sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

can you love the one who...


There’s one in you who’s sweet.
There’s one in you who’s mean.
Can you love them both?
Can you let them both be seen?

Can you love the one who tries?
And love her when she fails?
Can you love the one who lies?
And love the one who wails?

Can you love your tears?
Can you love your worry?
Can you love your darkest fears?
Can you love your fury?

Can you love indifference?
Love the one who clings?
Can you love the vibrant one?
Love the one who sings?

Can you love your addict?
Can you love your thief?
Can you love your vanity?
Can you love your grief?

Can you love your inner child?
And your body as you age?
Can you love your wild side?
Release her from her cage?
Can you love the one fulfilled?
And the one who’s not?

Can you love the one who’s chilled?
And whose temper’s hot?
Can you love the weakling?
The one who’s sometimes sick?

Can you love the warrior?
Who fights through thin and thick?

Can you love your crazy?
Can you love your sane?
Can you love your foolish heart?
Love your scattered brain?

There’s one in you who’s bored.
And one who’s often stressed
Can you love them both at once?
And she who tries her best?

If the answer’s “no.”
To some of the above
Then can you love the one in you
Who’s learning how to love?

Leah Pearlman

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

mar


Aqui
nesta pedra
alguém sentou
olhando o mar

O mar
não parou
pra ser olhado

Foi mar
pra tudo quanto é lado

- Paulo Leminski, via

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

salmo 138


Iahweh, tu me sondas e conheces:
conheces o meu sentar e o meu levantar,
De longe penetras o meu pensamento;
examinas o meu andar e o meu deitar,
meus caminhos todos são familiares a ti.

A palavra ainda não me chegou à língua,
e tu, Iahweh, já a conheces inteira.
Tu me envolves por trás e pela frente,
e sobre mim colocas tua mão.
É um saber maravilhoso, e me ultrapassa,
é alto demais: não posso atingí-lo!

Para onde ir, longe de teu sopro?
Para onde fugir, longe da tua presença?
Se subo aos céus, tu lá estás;
se me deito no Xeol, aí te encontro.

Se tomo as asas da alvorada
para habitar nos limites do mar,
mesmo lá é tua mão que me conduz,
e tua mão direita que me sustenta.

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

ouvir além das palavras


"A escuta profunda brota de um estado de relaxamento, não do esforço em aparar arestas. Toda a abertura, acolhimento e empatia necessários para ouvir encontram solo fértil ao se oferecer uma postura relaxada.

As pessoas se comunicam em vários níveis. Tudo fala. As roupas, os olhares, a respiração, um jeito específico de se curvar ou se levantar, a forma como batemos as mãos ou os pés. Cada pequeno detalhe tem voz, toca uma música.

Assim como é preciso treinar os ouvidos para discernir timbres, tons e efeitos em uma música, também precisamos treinar para realmente ouvir, comunicar e gerar conexão.

Quem já teve a oportunidade de assistir uma orquestra tocando ao ar livre pode relatar como o ambiente inteiro se relaciona com o que está sendo tocado. Não é algo metafísico, nem fantasioso. O vento sopra de uma forma diferente, todos se olham, sorriem silenciosamente, as árvores balançam, os pássaros enlouquecem.

Quando uma pessoa fala, algo similar acontece. Há uma variedade de outras ações sendo executadas ao redor e isso pode facilitar ou dificultar o processo. Às vezes, ela pode estar querendo desabafar, mas o ambiente não é favorável. Algum ruído pode surgir ou pode ser que haja pessoas ao redor em outra sintonia. Um sujeito atento pode tomar uma ação simples como trocar de lugar, alterando os níveis de abertura e conforto.

Enquanto ouve, é importante não só estar atento aos sinais abstratos mas observar as reações físicas do outro. Será que está se distraindo? Está se mexendo demais, está desconfortável, tentando encerrar o assunto, está indiferente?"

(Luciano Ribeiro, via)

fragilidade


Este verso, apenas um arabesco
em torno do elemento essencial – inatingível.
Fogem nuvens de verão, passam aves, navios, ondas,
e teu rosto é quase um espelho onde brinca o incerto movimento,
ai! já brincou, e tudo se fez imóvel, quantidades e quantidades
de sono se depositam sobre a terra esfacelada.
Não mais o desejo de explicar, e múltiplas palavras em feixe
subindo, e o espírito que escolhe, o olho que visita, a música
Feita de depurações e depurações, a delicada modelagem
de um cristal de mil suspiros límpidos e frígidos: não mais
que um arabesco, apenas um arabesco
abraça as coisas, sem reduzi-las.

- Carlos Drummond de Andrade, via

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

o melhor remédio


O melhor remédio é uma mente sã, um sorriso verdadeiro, um coração tranquilo.
Para toda cura, a Verdade 
Para toda conquista, o Respeito 
Para todo esforço, a Prosperidade
Para toda desavença, a Compaixão
Para toda dificuldade, a Esperança 
Para toda vitória, a Fé 
Para todo caminho, a Força 
Para toda tristeza, o Abraço 
Para todo elo, a Confiança 
Para todo o mal, o Amor.

- Caroline Ienne

domingo, 19 de janeiro de 2014

bendita matéria


Bendita sejas tu, áspera Matéria,
gleba estéril, duro rochedo,
tu que não cedes a não ser pela violência,
e nos forças a trabalhar, se quisermos comer.

Bendita sejas tu, perigosa Matéria,
mar violento, paixão indomável,
tu que nos devoras,
caso não te acorrentemos.

Bendita sejas tu, poderosa Matéria,
Evolução irresistível,
Realidade sempre nascente,
tu que a cada momento fazes explodir
as nossas molduras,
obrigando-nos a perseguir sempre mais longe
a Verdade.

Bendita sejas tu, Matéria universal,
Duração sem limites,

Éter sem margens
– Tríplice abismo das estrelas,
dos átomos e das gerações –,
tu que transbordas e dissolves nossas
estreitas medidas,
revelando-nos as dimensões de Deus.

Bendita sejas tu, Matéria impenetrável,
tu que, estendida em todo lugar
entre nossas almas e o Mundo das essências,
nos deixas lânguidos com o desejo
de penetrar o véu sem costura dos fenômenos.

- Teilhard de Chardin, via

sábado, 18 de janeiro de 2014

é preciso saber aceitar as próprias pausas


"É preciso saber aceitar as próprias pausas. (...)

No fundo, as cartas a Deus são as únicas cartas de amor que devem ser escritas. (...) É preciso ser capaz de viver sem livros e sem nada. Sempre haverá um pedacinho de céu que se pode olhar e um espaço suficiente dentro de mim para juntar as mãos em uma oração. (...)

A minha vida tornou-se um diálogo ininterrupto contigo, meu Deus, um único grande diálogo. Às vezes, quando estou em um cantinho do campo, os meus pés plantados na sua terra, os meus olhos voltados para o teu céu, o meu rosto se inunda de lágrimas que brotam de uma emoção profunda e de gratidão. Mesmo à noite, quando, deitada no meu leito, me recolho em ti, meu Deus, lágrimas de gratidão inundam o meu rosto: e essa é a minha oração."

- Etty Hillesum, aqui

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

pedra


Na pedra recolho
o sol na pedra quente, imóvel.
E o pródigo calor pródigo,
imóvel, ao corpo que se abeira
desse lago plácido.
Sem turbulência a alma aqueço
ao sol e vai-se este calor
à alma que se abeira, imóvel.
É um signo simples, cadência
de água, incandescência e sol
de quem só se encontra
em plenitude ou ânsia
na pedra quente e só.

- Dora Ferreira da Silva , via

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

ser no presente


Quem se senta e fica imóvel imediatamente se conecta com o primeiro nível de consciência, que fica um pouco abaixo da superfície de atenção do funcionamento cotidiano da mente. Trata-se de uma dura constatação, a do grau de indisciplina e inquietude de nossa mente (...). Santa Teresa comparava isso a um navio cuja tripulação se amotinou, prendeu o capitão e se revesa caoticamente no comando do navio. Alguns dias podem ser melhores do que outros, em matéria de distração, mas até mesmo isto, apenas prova como é inconstante a superfície de nossa mente, como depende das condições externas, como somos descentrados. (...)
“Por isso vos digo: não vos preocupeis com a vossa vida quanto ao que haveis de comer, nem com o vosso corpo quanto ao que haveis de vestir. Não é a vida mais do que o alimento e o corpo mais do que a roupa? (Mt 6, 26) Nossa meta é a de ser no presente momento, que é o único momento de realidade, de encontro com o Deus que é “Eu Sou”. No entanto, em questão de segundos, estamos pensando pensamentos de ontem, fazendo planos para amanhã, ou encadeando sonhos e desejos de realização no reino da fantasia. “Buscai em primeiro lugar seu Reino e sua justiça, e todas essas coisas vos serão acrescentadas. Não vos preocupeis, portanto, com o dia de amanhã, pois o dia de manhã se preocupará consigo mesmo”. (Mt 6, 33) O ensinamento de Jesus sobre a prece é simples e puro, incisivamente sábio e de bom senso. Ainda assim, parece estar muito além de de nossa capacidade de colocá-lo em prática. Será que ele estava mesmo se dirigindo ao comum da humanidade?
A descoberta do nosso nível de distração é fonte de humildade. Ajuda a nos lembrar que [o mantra] é uma descoberta universal. Por que outra razão teria João Cassiano recomendado o mantra (que ele chamava de "fórmula") mil e seiscentos anos atrás? (...) Diante dessa descoberta, é fácil nos desencorajarmos e darmos as costas para meditação. "Não é meu tipo de espiritualidade. Eu não sou do tipo de pessoa disciplinada. Por que meu período de oração deve ser mais um período de trabalho?" Esse desencorajamento frequentemente oculta um sentimento recorrente de fracasso e de inadequação, o lado fraco de nosso ego machucado e que se rejeita: “Não sou bom pra nada, nem mesmo para a meditação”.
O que precisamos acima de tudo, neste estagio, (...) é de um discernimento do significado da meditação e de uma sede que brota de um nível mais profundo de consciência do que aquele ao qual estamos presos (...).

A compreensão clara, desde o início, do que é o significado e o propósito do mantra, nos ajuda. Não se trata de uma varinha de condão que esvazia a mente, ou um interruptor que nos liga a Deus, mas, de uma disciplina, “que começa na fé e termina no amor”, que nos leva à pobreza do espírito. 

Não repetimos o mantra para eliminar as distrações, mas para nos ajudar a desviar nossa atenção delas. Apenas para descobrir que somos, ainda que modestamente, livres para dirigir nossa atenção em outra direção é o primeiro grande despertar. Trata-se do início do aprofundamento da consciência, que permite deixar as distrações na superfície, tal como as ondas na superfície do oceano.

- Laurence Freeman, OSB

nossa senhora do silêncio

Escultura: José Ismael

Às vezes quando, abatido e humilde, a própria força de sonhar se me desfolha e se me seca, e o meu único sonho só pode ser o pensar nos meus sonhos.

É então que me interrogo sobre quem tu és, figura que atravessas todas as minhas antigas visões demoradas de paisagens outras, e de interiores antigos e de cerimoniais faustosos de silêncio.

Visito contigo regiões que são talvez sonhos teus, terras que são talvez corpos teus de ausência e desumanidade. Talvez eu não tenha outro sonho senão tu, talvez seja nos teus olhos, encostando a minha face à tua, que eu lerei essas paisagens impossíveis, esses tédios falsos, esses sentimentos que habitam a sombra dos meus cansaços e as grutas dos meus desassossegos.

Eu não sei quem tu és. Que espécie de vida tens? Que modo de ver é o modo como te vejo? Como não te sonhar? Como não te sonhar Senhora das Horas que passam? Madona das águas estagnadas e das algas mortas. Consoladora dos que não têm consolação, Lágrima dos que nunca choram, Hora que nunca soa. Ópio de todos os silêncios, Lira para não se tanger, Vitral de lonjura e de abandono.

Livra-me da religião, porque é suave; e da descrença porque é forte. Rezo a ti o meu amor porque o meu amor é já uma oração; mas nem te concebo como amada, nem te ergo ante mim como santa. Só tu, sol que não brilhas, alumias as cavernas, porque as cavernas são tuas filhas. Posso amar-te e também adorar-te porque o meu amor não te possui e a minha adoração não te afasta.

Sê a Noite Total e que todo eu me perca e me esqueça em ti, e que os meus sonhos brilhem, estrelas, no teu corpo de distância e negação... Seja eu as dobras do teu manto, as jóias da tua tiara, e o ouro outro dos anéis dos teus dedos.

Realizadora dos absurdos. Que o teu silêncio me embale, que o teu mero-ser me acaricie e me amacie e me conforte Anjo da Guarda dos abandonados. Tu não és mulher. Nem mesmo dentro de mim evocas qualquer coisa que eu possa sentir feminina. É quando falo de ti que as palavras te chamam fêmea, e as expressões te contornam de mulher. Mas tu, na tua vaga essência, não és nada. Não tens realidade, nem mesmo uma realidade só tua. Propriamente, não te vejo, nem mesmo te sinto. Ocupas o intervalo dos meus pensamentos. Por isso eu não te penso nem te sinto. Debruço-me sobre o teu rosto branco nas águas noturnas do meu desassossego, no meu saber que és lua.

- Fernando Pessoa (via)

murar o medo

Bansky

O medo foi um dos meus primeiros mestres. Antes de ganhar confiança em celestiais criaturas, aprendi a temer monstros, fantasmas e demônios. Os anjos, quando chegaram, já eram para me guardarem, servindo como agentes da segurança privada das almas. Nem sempre os que me protegiam sabiam da diferença entre sentimento e realidade. Isso acontecia, por exemplo, quando me ensinavam a recear os desconhecidos.

Na realidade, a maior parte da violência contra as crianças sempre foi praticada não por estranhos, mas por parentes e conhecidos. Os fantasmas que serviam na minha infância reproduziam esse velho engano de que estamos mais seguros em ambientes que reconhecemos. Os meus anjos da guarda tinham a ingenuidade de acreditar que eu estaria mais protegido apenas por não me aventurar para além da fronteira da minha língua, da minha cultura, do meu território.

O medo foi, afinal, o mestre que mais me fez desaprender. Quando deixei a minha casa natal, uma invisível mão roubava-me a coragem de viver e a audácia de ser eu mesmo. No horizonte vislumbravam-se mais muros do que estradas. Nessa altura, algo me sugeria o seguinte: que há neste mundo mais medo de coisas más do que coisas más propriamente ditas.

No Moçambique colonial em que nasci e cresci, a narrativa do medo tinha um invejável casting internacional: os chineses que comiam crianças, os chamados terroristas que lutavam pela independência do país, e um ateu barbudo com um nome alemão. Esses fantasmas tiveram o fim de todos os fantasmas: morreram quando morreu o medo. Os chineses abriram restaurantes junto à nossa porta, os ditos terroristas são governantes respeitáveis e Karl Marx, o ateu barbudo, é um simpático avô que não deixou descendência.

O preço dessa construção [narrativa] de terror foi, no entanto, trágico para o continente africano. Em nome da luta contra o comunismo cometeram-se as mais indizíveis barbaridades. Em nome da segurança mundial foram colocados e conservados no Poder alguns dos ditadores mais sanguinários de que há memória. A mais grave herança dessa longa intervenção externa é a facilidade com que as elites africanas continuam a culpar os outros pelos seus próprios fracassos.

A Guerra-Fria esfriou, mas o maniqueísmo que a sustinha não desarmou, inventando rapidamente outras geografias do medo, a Oriente e a Ocidente. E porque se trata de novas entidades demoníacas não bastam os seculares meios de governação… Precisamos de intervenção com legitimidade divina… O que era ideologia passou a ser crença, o que era política tornou-se religião, o que era religião passou a ser estratégia de poder.

Para fabricar armas é preciso fabricar inimigos. Para produzir inimigos é imperioso sustentar fantasmas. A manutenção desse alvoroço requer um dispendioso aparato e um batalhão de especialistas que, em segredo, tomam decisões em nosso nome. Eis o que nos dizem: para superarmos as ameaças domésticas precisamos de mais polícia, mais prisões, mais segurança privada e menos privacidade. Para enfrentar as ameaças globais precisamos de mais exércitos, mais serviços secretos e a suspensão temporária da nossa cidadania. Todos sabemos que o caminho verdadeiro tem que ser outro. Todos sabemos que esse outro caminho começaria pelo desejo de conhecermos melhor esses que, de um e do outro lado, aprendemos a chamar de “eles”.

Aos adversários políticos e militares, juntam-se agora o clima, a demografia e as epidemias. O sentimento que se criou é o seguinte: a realidade é perigosa, a natureza é traiçoeira e a humanidade é imprevisível. Vivemos – como cidadãos e como espécie – em permanente situação de emergência. Como em qualquer estado de sítio, as liberdades individuais devem ser contidas, a privacidade pode ser invadida e a racionalidade deve ser suspensa.

Todas estas restrições servem para que não sejam feitas perguntas [incômodas] como, por exemplo, estas: porque motivo a crise financeira não atingiu a indústria de armamento? Porque motivo se gastou, apenas o ano passado, um trilhão e meio de dólares com armamento militar? Porque razão os que hoje tentam proteger os civis na Líbia são exatamente os que mais armas venderam ao regime do coronel Kadaffi? Porque motivos se realizam mais seminários sobre segurança do que sobre justiça?

Se queremos resolver (e não apenas discutir) a segurança mundial – teremos que enfrentar ameaças bem reais e urgentes. Há uma arma de destruição massiva que está sendo usada todos os dias, em todo o mundo, sem que sejam precisos pretextos de guerra. Essa arma chama-se fome. Em pleno século 21, um em cada seis seres humanos passa fome. O custo para superar a fome mundial seria uma fração muito pequena do que se gasta em armamento. A fome será, sem dúvida, a maior causa de insegurança do nosso tempo.

Mencionarei ainda outra silenciada violência: em todo o mundo, uma em cada três mulheres foi ou será vítima de violência física ou sexual durante o seu tempo de vida… A verdade é que… pesa uma condenação antecipada pelo simples fato de serem mulheres.

A nossa indignação, porém, é bem menor que o medo. Sem darmos conta, fomos convertidos em soldados de um exército sem nome, e como militares sem farda deixamos de questionar. Deixamos de fazer perguntas e de discutir razões. As questões de ética são esquecidas porque está provada a barbaridade dos outros. E porque estamos em guerra, não temos que fazer prova de coerência nem de ética nem de legalidade.

É sintomático que a única construção humana que pode ser vista do espaço seja uma muralha. A chamada Grande Muralha foi erguida para proteger a China das guerras e das invasões. A Muralha não evitou conflitos nem parou os invasores. Possivelmente, morreram mais chineses construindo a Muralha do que vítimas das invasões do Norte. Diz-se que alguns dos trabalhadores que morreram foram emparedados na sua própria construção. Esses corpos convertidos em muro e pedra são uma metáfora de quanto o medo nos pode aprisionar.

Há muros que separam nações, há muros que dividem pobres e ricos. Mas não há hoje no mundo muro que separe os que têm medo dos que não têm medo. Sob as mesmas nuvens cinzentas vivemos todos nós, do sul e do norte, do ocidente e do oriente… Citarei Eduardo Galeano acerca disso que é o medo global:

“Os que trabalham têm medo de perder o trabalho. Os que não trabalham têm medo de nunca encontrar trabalho. Quem não tem medo da fome, tem medo da comida. Os civis têm medo dos militares, os militares têm medo da falta de armas, as armas têm medo da falta de guerras.”

E, se calhar, acrescento agora eu, há quem tenha medo que o medo acabe.

(Mia Couto, aqui)

creio na minha fome


Creio na minha fome
na demanda de todas
as fomes
e em seus atributos
de espanto e loucura

creio na substância
infinita
e em seus possíveis
modos transparentes
e fugazes

creio no corpo feminino
nas formas nuas
que me salvam
do silêncio

creio nos pássaros
que voam
bêbados de ocaso
creio nas rochas
que fundam
minha esquiva paisagem

creio nos horizontes
do nada
em que deus trava
para sempre perdido
o mais rude combate

creio no universo
abrasado
de paixão e delírio

- Marco Lucchesi, via  

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

canção de alta noite


Alta noite, lua quieta,
muros frios, praia rasa.

Andar, andar, que um poeta
não necessita de casa.

Acaba-se a última porta.
O resto é o chão do abandono.

Um poeta, na noite morta,
não necessita de sono.

Andar...Perder o seu passo
na noite, também perdida.

Um poeta, à mercê do espaço,
nem necessita de vida.

Andar... - enquanto consente
Deus que seja a noite andada.

Porque o poeta, indiferente,
anda por andar - somente.
Não necessita de nada.

- Cecília Meirelles

Presente de Lula Ramires :-)

a revolução, fora e dentro

Scarpini

Amanhã você vai sair — ou voltar — às ruas e fazer a revolução.

Sem medo, sem máscara, vai dizer “bom dia”, “boa tarde” e “boa noite” a todos os conhecidos e desconhecidos que passarem por você. No elevador, no estacionamento, no ônibus, na fila da padaria. E se ninguém responder, não importa. Você vai manifestar um sorriso largo como uma avenida e seguir em frente.

Porque é para frente que se anda.

No trânsito, vai dar passagem a todos os outros carros assim que vir uma seta piscar, indiferente às buzinas nervosas de quem vier atrás. E quando alguém fizer a mesma gentileza por você, não vai esquecer de acenar em puro e simples agradecimento.

Ao ligar o ônibus coletivo com o qual circula pela cidade todos os dias, vai se lembrar de que está conduzindo pessoas e não caixas de verdura. E de que os milhares de veículos lá fora não são seus adversários em uma corrida para lugar nenhum.

Vai começar todo e qualquer pedido com “por favor” e concluí-lo com “obrigado”.

Quando reunir seu batalhão no quartel, em vez de gritar “ordinário, marche”, vai orientá-lo a ler a Constituição Brasileira e qualquer um dos livros de Carlos Drummond de Andrade. Para que seus soldados percebam, do alto de seus coturnos, o quanto as coisas às vezes não fazem mesmo sentido. E descubram o quanto a autoridade que lhes foi atribuída pode ser usada não para reprimir e subjugar, mas para fazer da vida uma extraordinária marcha para frente.

Porque é para frente que se marcha.

No hospital público em que você, doutor ou doutora, dá plantão de madrugada, vai atender cada paciente com a calma, a seriedade, a competência e o respeito devidos a qualquer ser humano. E vai sentir vergonha de todas as vezes em que se dirigiu a essas pessoas como se você fosse um ser superior vestindo branco e elas não passassem de malditas desvalidas atrás de uma injeção “de graça”.

Nas cerimônias religiosas, vai retribuir a confiança de quem o chama de padre, pastor ou pai de santo não apenas com uma benção, um sermão ou um passe, mas pedindo às pessoas que façam uma oração para aqueles que protestam e para aqueles contra quem se protesta. E que nessa oração, o único pedido seja a compreensão e a clareza, para que todos saibam realmente o que estão fazendo, contra quem, contra o quê e como estão se manifestando.
Nos veículos de comunicação que você dirige, vai determinar a seus repórteres, redatores, editores e afins que se concentrem no factual, que ouçam, analisem e publiquem todas as visões possíveis de cada fato. E que deixem os leitores, ouvintes e telespectadores concluírem como bem entenderem.

Nas escolas e nas faculdades, vai ensinar seus alunos a ver e pensar política de outro modo, para além dos discursos e dos partidos, com profundidade, amplitude e perspectiva. Com inteligência, liberdade e espírito crítico.

Nas redes sociais, antes de curtir e compartilhar qualquer post sobre qualquer assunto, você vai pensar. E vai pensar de novo, até se certificar de que realmente acredita naquilo.

E quando alguém próximo a você esbravejar palavras de ódio e apoio à violência — seja da parte de quem se manifesta depredando, seja do lado de quem defende agredindo — você não vai discutir. Vai respirar fundo, pensar consigo “let it be” e seguir em frente. Porque há vários lados nessa história, mas nenhum deles é “o adversário”. E você está em todos eles.

Você é o mínimo de inteligência que resiste em cada homem e cada mulher que ainda respiram neste mundo, brutalizados e amortecidos pela doença da normalidade que torna tudo banal — as mortes, os estupros, a violência doméstica, a roubalheira nos cargos públicos, o corrupto e o corruptor, o ódio e a maldade.

Amanhã você vai sair às ruas e fazer a revolução. E se ninguém mais aderir, não importa. Você vai manifestar um sorriso largo como uma avenida e seguir em frente.

Porque é para frente que se anda.

E a revolução “lá fora” só começa depois de uma outra, aquela que acontece “aqui dentro”.

- André J. Gomes, Revista Bula

os dois reis e os dois labirintos


Contam os homens dignos de fé (porem Ala sabe mais) que nos primeiros dias houve um rei das ilhas da Babilônia que reuniu arquitetos e magos e ordenou-lhes a construção de labirinto tão surpreendente e sutil que os varões mais prudentes não se venturavam a entrar, e os que entravam se perdiam. Essa obra era um escândalo, pois a confusão e a maravilha são operações próprias de Deus e não dos homens. Com o correr do tempo, veio à sua corte um rei dos árabes, e o rei da Babilônia (para zombar da simplicidade de seu hóspede) fez com que ele penetrasse no labirinto, onde vagueou humilhado e confuso ate o fim da tarde. Implorou então o socorro divino e deu com a porta. Seus lábios não proferiram queixa nenhuma, mas disse ao rei da Babilônia que ele tinha na Arabia outro labirinto e, se Deus quisesse, lho daria a conhecer algum dia. Depois regressou a Arábia, juntou seus capitães e alcaides e arrasou os reinos da Babilônia com tão venturosa sorte que derrubou seus castelos, dizimou sua gente e fez prisioneiro o próprio rei. Amarrou-o sobre um camelo veloz e levou-o para o deserto. Cavalgaram três dias, e lhe disse: "Oh, rei do tempo e substância e símbolo do século, na Babilônia, quiseste que me perdesse num labirinto de bronze com muitas escadas, portas e muros; agora o Poderoso achou por bem que eu te mostre o meu, onde não há escadas a subir, nem portas a forçar, nem cansativas galerias a percorrer, nem muros que te vedem os passos".

Em seguida, desatou-lhes as amarras e o abandonou no meio do deserto, onde morreu de fome e de sede. A g1ória esteja com Aquele que não morre.

- Jorge Luis Borges, de celestial ironia

tudo, todos e o todo


Somos feitos de barro e de fogo
e por isso somos o desejo e o amor.
Fomos feitos de terra e de água
e assim somos eternos como a vida
e somos passageiros como a flor.
Somos a luz, a sombra, o clarão, a escuridão
a memória de deus, a história e a poesia.
Somos o espaço e o tempo, a casa e a janela
e a noite e o dia, e o sol e o céu e o chão.
Somos o silêncio e o som da vida.
O estudo, a lembrança e o esquecimento.
Somos o medo e o abandono.
A espera somos nós e somos a esperança.
Pois não somos mais e nem menos do que tudo.
Somos o perene e o momento, a pedra e o vento
a energia e a paz, a vida criada e o criador.
Somos o mundo que sente, e irmãos da vida
somos a aventura de ser vida e sentimento.
E assim em cada ave que voa há nossa alma
e em cada ave que morre, a nossa dor.

- Carlos Rodrigues Brandão

Via

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

deus é silêncio


"Mestre Eckhart diz que não há nada tão parecido com Deus quanto o silêncio. A razão disso é que o silêncio não é apenas a ausência de ruído. Quando meditamos, procuramos um tempo e um lugar tranquilos, externamente silenciosos, mas não é isso que esse silêncio realmente significa. Silêncio é atenção. Quando prestamos atenção a algo, mas prestamos atenção de verdade, estamos sendo silentes. Assim, se nada é tão parecido com Deus quanto o silêncio é por nada ser tão de Deus quanto a atenção pura, o puro amor. Quando tiramos a atenção de nós mesmos, amamos aquele a quem damos essa atenção. Por isso, na tradição mística do cristianismo, o trabalho da contemplação é o trabalho do amor, porque é o trabalho do silêncio, porque o trabalho do silêncio é o trabalho da atenção."

- Laurence Freeman (OSB)

Via

unidade na diversidade

volatilidade: interioridade e alteridade no mundo de hoje

Foto: Kenji Aoki

(...) Relações voláteis geram identidades igualmente voláteis. Incertas. Mutantes. Formam-se a partir delas personalidades auto-referenciadas, de uma autonomia não livre, mas compulsiva. São além disso identidades temporárias, que podem ser apagadas e substituídas por outros rótulos. A memória, atrofiada pelo ritmo da vida líquida pós-moderna, ensina que esquecer é o melhor, a fim de poder reescrever na lousa apagada uma nova identidade. Hoje me auto compreendo assim, amanhã já será diferente. São igualmente identidades plurais, abertas, sem escolhas ou decisões que empenhem a vida.

Os vínculos admitidos são aqueles que cabem nas redes, como Facebook, Orkut, etc. Ali não se depende de relações afetivas que pesam e tiram mobilidade. E quando a comunicação não mais interessar, pode-se cortá-la com a ligeireza de um click. E novamente mergulhar na mais profunda solidão e vazio de sentido a que este estado de coisas condena o sujeito pós-moderno. A única relação que não o ameaça é aquela que ele estabelece com o seu eu, convertido no mortal espelho de Narciso. Voltar-se para si mesmo é a única instancia dotada de certa permanência em um mundo complexo, incerto e inevitável.

A interioridade humana hoje vai se convertendo em um novo paradigma emergente. Trata-se, sem dúvida, de uma dimensão constitutiva do ser humano. O que se dá, no entanto, de fato, é um estreitamento da interioridade, que se vive em grande medida pelo fluxo sempre em movimento das sensações que absorvem, não favorecendo o encontro profundo com o próprio eu, e por conseguinte tampouco com o outro.

Por um lado, trata-se de um sintoma extremamente positivo, uma vez que denota o advento da já iniciada recuperação do espiritual como dimensão de importância iniludível na vida humana. Os seres humanos de hoje experimentam, de novo, aquilo que Santo Agostinho escreveu em seu memorável livro das Confissões: “Eu não amava ainda e amava amar: buscava o que poderia amar, amando amar”.

Por outro lado, esse voltar-se para dentro de si mesmo pode incluir e efetivamente inclui a tentação de esconder-se em si mesmo e terminar não conseguindo daí sair . E a conseqüência é o estreitamento da própria interioridade que tem como resultado o fechamento ao outro. E uma terrível e desesperadora solidão.

(...) O vazio que isto gera já é bastante para denunciar que o ser humano é constituído pelo primado da alteridade. Apenas nos olhos do outro vejo quem sou e descubro minha identidade que já não pode dispensar a diferença do outro para autocompreender-se. A intimidade do sujeito humano só existe habitada pela presença de um Mistério.

A volta à interioridade como paradigma não pretende ser, portanto, um ensimesmamento do eu. Mas sim a condição indispensável para o reconhecimento da Presença que habita o humano. E esse reconhecimento, por sua vez, exigirá da pessoa humana um êxodo, uma saída de si, em direção ao outro, humano e divino, em relação com o qual é imperioso entrar para re-encontrar-se e re-conciliar-se com sua identidade perdida. A volatilidade é inimiga desse fundamental encontro marcado desde toda a eternidade.

- Maria Clara Bingemer, professora do Departamento de Teologia e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio | Publicado originalmente no site do Amai-vos

invenção de orfeu


Qualquer que seja a chuva desses campos
devemos esperar pelos estios;
e ao chegar os serões e os fiéis enganos
amar os sonhos que restarem frios.
Porém se não surgir o que sonhamos
e os ninhos imortais forem vazios,
há de haver pelo menos por ali
os pássaros que nós idealizamos.
Feliz de quem com cânticos se esconde
julga tê-los em seus próprios bicos,
e ao bico alheio em cânticos responde.
E vendo em torno as mais terríveis cenas,
possa mirar-se as asas depenadas
e contentar-se com as secretas penas.

- Jorge de Lima

Invenção de Orfeu. São Paulo: Cosac Naify, 2013, p. 53 – 26ª parte do Primeiro Canto (via)

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

estado de graça


Barbara Hendricks (soprano) e Roland Pöntinen (piano) na gravação da Ave Maria (Ellens Gesang III) de Franz Schubert. Estocolmo, novembro de 2007.

uma política dos afetos


A verdadeira tarefa política é a reconstrução de nossos afetos. Inebriados por discussões a respeito de sistemas de normas e instituições, demoramos muito tempo para perceber que a política é, acima de tudo, uma questão de mobilização de afetos. Discursos circulam e levam os corpos a sentirem de uma determinada forma, a temerem certas situações.

A política é a arte de afetar os corpos e de levá-los a impulsionar certas ações. Devido a isso, nunca entenderemos nada das dinâmicas dos fatos políticos se esquecermos sua dimensão profundamente afetiva.

Por exemplo, não é difícil perceber como, nas últimas décadas, uma máquina de medo e ressentimento foi colocada em funcionamento.

Esses são, há tempos, os principais afetos que circulam no campo político. Medo do tempo que não conhecemos e que pode ser diferente do passado e do presente. Medo de ficar longe demais da segurança da "nossa terra", de ser assaltado, de ter sua propriedade violada, da morte violenta. Mas, principalmente, um ressentimento travestido de pessimismo prudente a respeito dos acontecimentos e da errância necessária à toda procura.

A política baseada no ressentimento é, de fato, algo a ser pensado. Talvez possamos dizer que, em política, o ressentimento é sempre o sentimento mobilizado contra a errância.

Quando um acontecimento ocorre, muitas vezes ele não instaura imediatamente uma nova ordem. Só em situações muito amadurecidas, e por isso mesmo muito raras, vemos essa passagem imediata de uma ordem a outra. Normalmente, acontecimentos são aquilo que instaura uma nova errância, com seus erros, suas perdas, seu tempo confuso.

Esse tempo confuso é, em certas situações, onde acontecimentos ocorrem "cedo demais", praticamente inevitáveis. Contra ele, o ressentimento sempre dirá: melhor que nada tivesse ocorrido, melhor ter ficado na situação passada, por mais que ela fosse insatisfatória, ou seja, vamos dar um jeito de voltar à antiga morada, mesmo que ela esteja em ruínas. Basta ver o que hoje lemos a respeito das revoltas no mundo árabe.

No entanto, esse tempo confuso produzirá sua própria superação, por mais que ela demore, por mais que refluxos ocorram, mas à condição de produzirmos novos afetos.

Nesses momentos, cria-se uma divisão entre os que se voltam aos velhos afetos de sempre e aqueles capazes de adquirir uma nova confiança, uma nova força, mesmo quando o céu é turvo. Pois eles sabem que nunca haverá nova política com os velhos sentimentos de sempre.

- Vladimir Safatle

Fonte

a mais longa viagem: rumo ao próprio coração


Observava o grande conhecedor dos meandros da psique humana C.G. Jung: a viagem rumo ao próprio centro, ao coração, pode ser mais perigosa e longa do que a viagem à lua. No interior humano habitam anjos e demônios, tendências que podem levar à loucura e à morte, e energias que conduzem ao êxtase e à comunhão com o Todo.

Há uma questão nunca resolvida entre os pensadores da condição humana: qual é a estrutura de base do ser humano? Muitas são as escolas de intérpretes. Não é o caso de sumariá-las.

Indo diretamente ao assunto, diria que não é a razão como comumente se afirma. Esta não irrompe como primeira. Ela remete a dimensões mais primitivas de nossa realidade humana, das quais se alimenta, e que a perpassam em todas as suas expressões. A razão pura kantiana é uma ilusão. A razão sempre vem impregnada de emoção, de paixão e de interesse. Conhecer é sempre um entrar em comunhão interessada e afetiva com o objeto do conhecimento.

A razão sempre vem impregnada de emoção, de paixão e de interesse
Mais que ideias e visões de mundo, são paixões, sentimentos fortes, experiências seminais que nos movem e nos põem em marcha. Eles nos levantam, nos fazem arrostar perigos e até arriscar a própria vida.

O primeiro parece ser a inteligência cordial, sensível e emocional. Suas bases biológicas são as mais ancestrais, ligadas ao surgimento da vida, há 3,8 bilhões de anos, quando as primeiras bactérias irromperam no cenário da evolução e começaram a dialogar quimicamente com o meio para poderem sobreviver. Esse processo se aprofundou a partir do momento em que, há milhões de anos,surgiu o cérebro límbico dos mamíferos, cérebro portador de cuidado, enternecimento, carinho e amor pela cria, gestada no seio desta espécie nova de animais, à qual nós humanos também pertencemos. Em nós ele alcançou o patamar autoconsciente e inteligente. Todos nós estamos vinculados a esta tradição primeva.

O pensamento ocidental, logocêntrico e antropocêntrico, colocou o afeto sob suspeita, com o pretexto de prejudicar a objetividade do conhecimento. Houve um excesso, o racionalismo, que chegou a produzir em alguns setores da cultura uma espécie de lobotomia, quer dizer, uma completa insensibilidade face ao sofrimento do ser humano e dos demais seres e da própria Mãe Terra. O papa Francisco, em Lampedusa, face aos imigrados africanos, criticou a globalização da insensibilidade, incapaz de se compadecer e de chorar.

Mas, podemos dizer que a partir do romantismo europeu (com Herder, Goethe e outros) se começou a resgatar a inteligência sensível. O romantismo é mais que uma escola literária. É um sentimento do mundo, de pertença à natureza e da integração dos seres humanos na grande cadeia da vida (Löwy e Sayre, Revolta e melancolia, 28-50).

Modernamente, o afeto, o sentimento e a paixão (pathos) ganharam centralidade. Esse passo é hoje imperativo, pois somente com a razão (logos) não damos conta das graves crises por que passam a vida, a Humanidade e a Terra. A razão intelectual precisa integrar a inteligência emocional sem o que não construiremos uma realidade social integrada e de rosto humano. Não se chega ao coração do coração sem passar pelo afeto e pelo amor.

Um dado, entretanto, cabe ressaltar entre outros importantes, por sua relevância e pela alta tradição de que goza: é a estrutura do desejo que marca a psique humana. Partindo de Aristóteles, passando por Santo Agostinho e pelos medievais, como São Boaventura (chama a São Francisco de vir desideriorum, um homem de desejos), por Schleiermacher, Max Scheler nos tempos modernos e culminando em Sigmund Freud, Ernst Bloch e René Girard nos tempos mais recentes, todos afirmam a centralidade da estrutura do desejo.

O desejo não é um impulso qualquer. É um motor que dinamiza e põe em marcha toda a vida psíquica. Ele funciona como um princípio, traduzido também pelo filósofo Ernst Bloch por princípio esperança. Por sua natureza, o desejo é infinito e confere o caráter infinito ao projeto humano.

O desejo torna dramática e, por vezes, trágica a existência. Mas também, quando realizado, uma felicidade sem igual. Por outro lado, produz grave desilusão quando o ser humano identifica uma realidade finita como sendo o objeto infinito desejado. Pode ser a pessoa amada, uma profissão sempre ansiada, uma propriedade, uma viagem pelo mundo ou uma nova marca de celular.

O desejo não é um impulso qualquer. É um motor que dinamiza e põe em marcha toda a vida psíquica
Não passa muito tempo, e aquelas realidades desejadas lhe parecem ilusórias e apenas fazem aumentar o vazio interior, grande, do tamanho de Deus. Como sair deste impasse tentando equacionar o infinito do desejo com o finito de toda realidade? Vagar de um objeto a outro, sem nunca encontrar repouso? O ser humano tem que se colocar seriamente a questão: qual é o verdadeiro e obscuro objeto de seu desejo? Ouso responder: este é o Ser e não o ente, é o Todo e não a parte, é o Infinito e não o finito.

Depois de muito peregrinar, o ser humano é levado a fazer a experiência do cor inquietum de Santo Agostinho, o incansável homem do desejo e o infatigável peregrino do Infinito. Em sua autobiografia, As confissões, Agostinho testemunha com comovido sentimento:

Tarde te amei, ó Beleza tão antiga e tão nova.Tarde te amei.Tu me tocaste e eu ardo de desejo de tua paz. Meu coração inquieto não descansa enquanto não repousar em ti(livro X, n. 27).

Aqui temos descrito o percurso do desejo que busca e encontra o seu obscuro objeto sempre desejado, no sono e na vigília. Só o Infinito se adequa ao desejo infinito do ser humano. Só então termina a viagem rumo ao coração e começa o sábado do descanso humano e divino.

- Leonardo Boff, via

não pares

Escultura: David McCracken, "Diminish and ascend"

“Não, não pares! É graça divina começar bem. Graça maior é persistir na caminhada certa, manter o ritmo. Mas a graça das graças é não desistir. Podendo ou não, caindo, embora aos pedaços, chegar ao fim.”

- D. Hélder Câmara

busco teu nome

Sufis persas do Curdistão

Assim,
entre as rochas,
sobre os montes,
busco Teu nome.
Busco Teu nome
como o buscam os pássaros
voando pelos céus,
os peixes nadando pelos mares,
os antílopes correndo pelas planícies.
Como o homem que ama e deseja,
busco Teu nome: Deus…

Amo Teu nome.
canto Teus louvores,
agradeço,
enumero e digo Teus atributos.
Amo Teu nome.

Conheci o mundo e as coisas.
Aprendi.
E, apesar de tudo,
não conheço nem o mundo nem as coisas.

Minha cabeça está descoberta,
descalços os meus pés.
A tudo renuncio;
sigo, porém, buscando o Teu nome…

Com a voz de todos aqueles
que Te amam e Te chamam:
Amo Teu nome.

- Yunus Emre, via

domingo, 12 de janeiro de 2014

ponto final


"Meditar não é evitar problemas ou fugir das dificuldades. Nossa prática não consiste em fugir. Nossa prática consiste em adquirir bastante força para enfrentar, efetivamente, os problemas. Para isso, precisamos estar calmos, sólidos e viçosos. É por isso que precisamos praticar a arte do ponto final. Quando aprendemos a parar, ficamos mais calmos, e a nossa mente, mais lúcida, como as águas que ficam mais claras após terem se assentado as partículas de lama. Sentando tranquilamente, apenas inspirando e expirando, desenvolvemos força, concentração e lucidez. Portanto sentem-se como uma montanha. Nenhum vento pode derrubar uma montanha."

- Ven. Thich Nhat Hanh

a propósito do pai nosso (2)


Dou continuidade à proposta iniciada no domingo passado de publicar, em 5 partes, a reflexão de Simone Weil sobre a oração do Pai Nosso. Para meditar, orar e, espero, favorecer o contato com o sagrado, seja qual for a sua crença.

Para acessar o texto completo, clique na tag "pai nosso".

Seja feita a vossa vontade
Nós nunca estamos absoluta e infalivelmente certos da vontade de Deus, a não ser em relação ao passado. Todos os acontecimentos já sucedidos, quaisquer tenham sido, estão de acordo com a vontade do pai Todo-Poderoso. Isto está implícito na noção de onipotência. O futuro também, tal como venha a ser, uma vez consumado, o terá sido de acordo com a vontade de Deus. Não podemos acrescentar nem subtrair nada a esta conformidade. Então, após um apelo do desejo (venha a nós o vosso reino) em direção ao possível, uma vez mais pedimos aquilo que é (seja feita a vossa vontade). Mas não mais uma realidade eterna como é a santidade do Verbo. Aqui o objeto de nossa demanda é aquilo que se produz no tempo. Mas pedimos a conformidade infalível e eterna daquilo que se produz no tempo com a vontade divina. Depois de ter, pelo primeiro pedido, arrancado o desejo ao tempo para aplicá-lo ao eterno, e tê-lo assim transformado, nós retomamos este desejo, tornado ele próprio, de certa forma eterno, para aplicá-lo de novo ao tempo. Então nosso desejo rasga o tempo para encontrar atrás a eternidade. É aquilo que se passa quando sabemos fazer de todo acontecimento sucedido, qualquer tenha sido ele, um objeto do desejo. Eis aí algo totalmente diferente da resignação: a palavra aceitação mesma é muito fraca. É preciso desejar que tudo que aconteceu tenha sucedido, e nada além disto. Não porque o que tenha acontecido seja bom aos nossos olhos, mas porque Deus o permitiu, e porque a obediência do curso de acontecimentos a Deus é em si própria um bem absoluto.

Assim na terra como no céu
Esta associação de nosso desejo à vontade toda-poderosa de Deus deve estender-se às coisas espirituais. Nossas ascensões e quedas espirituais e aquelas dos seres que amamos mantêm um relacionamento com o outro mundo, mas são também acontecimentos que se produzem aqui embaixo, no tempo. Neste sentido, cada detalhe neste imenso mar de acontecimentos está articulado com o todo de um modo conforme à vontade de Deus. Posto que nossas faltas anteriores já foram cometidas e nós devemos desejar que elas tenham sido cometidas. Devemos estender este desejo ao futuro, considerando o dia em que ele tenha se convertido em passado. Esta é uma correção necessária à demanda de que o reino de Deus venha a nós. Devemos abandonar todos os desejos por aquele da vida eterna, mas precisamos desejar a vida eterna, ela própria, com desprendimento. O apego à salvação é ainda mais perigoso que os outros. É preciso pensar na vida eterna como pensamos na água quando mortos de sede, e ao mesmo tempo desejar para si e para os seres queridos a privação eterna desta água, mais do que estar plenos dela contra a vontade de Deus, se tal coisa fosse concebível. As três demandas precedentes estão relacionadas às três Pessoas da Trindade, o Filho, o Espírito e o Pai, e também às três partes do tempo: o presente, o futuro e o passado. As três demandas seguintes se referem mais diretamente às três partes do tempo em outra ordem, presente, passado, futuro.

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Texto original:

WEIL, Simone. À propos du "Nôtre Père", In Attente de Dieu. Paris: Flamarion, 1996. Tradução de Elisa Cintra.

Tradução publicada originalmente no site da Comunidade Mundial de Meditação Cristã no Brasil

explorações


Deite de costas... e relaxe.

Sinta o peso do seu corpo repousado sobre a superfície que o sustenta.

Comece pequeno.

o necessário resgate do sagrado


Uma dimensão sine qua non para inaugurar uma nova aliança para com a Terra reside no resgate da dimensão do sagrado. Sem o sagrado a afirmação da dignitas terrae e de seus direitos permanece uma retórica sem efeito. O sagrado constitui uma experiência fundadora. Ele subjaz às experiências que deram origem às religiões e às culturas humanas.

Os últimos séculos se caracterizam por uma sistemática intervenção nos ritmos da natureza a ponto de ficarmos surdos à musicalidade dos seres e cegos face à grandeur do céu estrelado. Com isso perdemos a experiência do sagrado do universo. Em seu lugar entrou a vigorar vasta profanidade, que reduziu o universo a uma realidade inerte, mecânica e matemática e a Terra a um simples armazém de recursos entregues à disponibilidade humana. Tirou-se a palavra de todas as coisas, para que só a palavra humana imperasse.

Se não conseguirmos resgatar o sagrado, dificilmente garantiremos o respeito à Terra e aos demais seres que possuem um valor intrínseco. A ecologia se transformará numa técnica de simples gerenciamento da voracidade humana mas jamais em sua superação. A pretendida nova aliança significará apenas uma trégua para que a Terra se refaça das chagas recebidas, para logo em seguida receber outras, porque o padrão das relações agressivas não mudou nem transformou nossa atitude básica de ausência de respeito e de sacralidade.

Antes de qualquer outra coisa, cumpre que nos reencantemos com o universo. Isso foi bem expresso pelo astronauta norte-americano Edgar D. Mitchell, em 1971, sobre a Apolo 14 a caminho da lua. Exclamava boquiaberto: "Daqui, a milhares de milhas de distância, a Terra mostra a incrível beleza de uma joia esplêndida de cor azul branca, flutuando no vasto céu escuro. Ela cabe na palma de minha mão. Nela está tudo o que é sagrado e amado por nós”.

Que é o sagrado? Não é uma coisa. É uma qualidade das coisas, que de forma envolvente nos toma totalmente, nos fascina, nos fala ao profundo de nosso ser e nos dá a experiência imediata de respeito, de temor e de veneração.

Rudolf Otto, um clássico estudioso do fenômeno em O sagrado (das Heilige), descreve em duas palavras-chave a experiência do sagrado: o tremendum e o fascinosum. O tremendum é aquilo que nos faz tremer por sua magnitude e pelo desbordamento de nossa capacidade de suportar a sua presença. Esta nos faz fugir devido a sua arrasadora intensidade. E ao mesmo tempo, é o fascinosum, vale dizer, aquilo que nos fascina, nos arrasta como um íman irreprimível porque nos concerne absolutamente. O sagrado é como o sol: sua luz nos arrebata e nos enche de entusiasmo (fascinosum). E ao mesmo tempo nos obriga a desviar o olhar porque pode nos cegar e queimar (tremendum).

É essa experiência ambivalente que os seres humanos originários fizeram e nós ainda podemos fazer em contato com o cosmos, com a Terra, com a vida. com as pessoas carismáticas, com a atração amorosa entre um homem e uma mulher. Sentiram comunicar-se nestas realidades uma força irrefragável, expressa classicamente pela palavra melanésia de mana ou pelo axé das religiões afro. Potencialmente, todas as coisas são portadores de mana ou de axé. São por excelência a revelação do sagrado, sua epifania e diafania.

Por debaixo de tudo opera, como nos dizem os modernos cosmólogos, a Energia fontal, o Abismo gerador de todas as coisas, o Spiritus Creator. O sagrado irrompe em nós quando internalizamos a visão contemporânea do universo em evolução e em cosmogênese. Não basta esta cosmovisão que pode ser encontrada no Google. Do que precisamos é de uma comoção e uma experiência de choque. Precisamos sentirmo-nos dentro destes conhecimentos sobre o cosmos, a Terra e a natureza, porque são conhecimentos sobre nós mesmos, sobre nossa ancestralidade e sobre a nossa realidade mais profunda. São tais comoções que modificam nossas vidas.

Como não se extasiar diante da imensidão de energia ejetada na singularidade do big bang, na formação do campo de Higgs, que permitiu conferir massa às partículas originárias, a constituição das nuvens de gases que originaram a primeira geração de estrelas que. depois de explodirem. deram origem às galáxias, às estrelas, aos planetas e a nós mesmos. É o fascinosum.

Que existe de mais tremendo e misterioso do que a massiva destruição da matéria inicial pela anti-matéria sobrando apenas uma bilionésima parte, da qual se origina todo o universo e nós mesmos? Aqui o tremendum se associa ao fascinosum. E poderíamos enumerar outras tantas experiências.

Todas elas nos colocam diante de uma realidade cuja melhor forma de abordá-la é pela teoria da complexidade pela qual os contrários se fazem complementares, aceitar que somos parte e parcela deste Todo. Só nos integramos e nos sentimos em casa quando nos associamos a essa sinfonia e disfonia, quando compreendemos que o bumbo convive com o violino, quando usamos nossa criatividade para agirmos com a natureza e nunca contra ela ou à revelia dela.

Esse sagrado assumido nos faz regressar de nosso exílio e despertar de nossa alienação. Ele nos reintroduz na Casa que havíamos abandonado. Somente uma relação pessoal com a Terra nos faz amá-la. E a quem amamos também não exploramos mas respeitamos e veneramos. Agora poderá começar uma nova era, não de trégua mas de paz perpétua (Kant) e de verdadeira re-ligação de tudo com tudo.

- Leonardo Boff | artigo publicado no Jornal do Brasil, 09-12-2012.

o pequeno Diego diante do grande Mar


Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar. Viajaram para o Sul.

Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando. 

Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. 

E foi tanta a imensidão do mar, e tanto seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza. 

E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai: — Me ajuda a olhar!

- Eduardo Galeano

sábado, 11 de janeiro de 2014

prece



Clarice Lispector, sempre visceral:

"Alivia a minha alma, faze com que eu sinta que Tua mão está dada à minha, faze com que eu sinta que a morte não existe porque na verdade já estamos na eternidade, faze com que eu sinta que amar é não morrer, que a entrega de si mesmo não significa a morte, faze com que eu sinta uma alegria modesta e diária, faze com que eu não Te indague demais, porque a resposta seria tão misteriosa quanto a pergunta, faze com que me lembre de que também não há explicação porque um filho quer o beijo de sua mãe e no entanto ele quer e no entanto o beijo é perfeito, faze com que eu receba o mundo sem receio, pois para esse mundo incompreensível eu fui criada e eu mesma também incompreensível, então é que há uma conexão entre esse mistério do mundo e o nosso, mas essa conexão não é clara para nós enquanto quisermos entendê-la, abençoa-me para eu viva com alegria o pão que eu como, o sono que durmo, faze com que eu tenha caridade por mim mesma, pois senão não poderei sentir que Deus me amou, faze com que eu perca o pudor de desejar que na hora de minha morte haja uma mão humana amada para apertar a minha, amém."

Celebremos o mistério. :-)

todo se transforma



Cada uno da lo que recibe
Luego recibe lo que da
Nada es más simple
No hay otra norma
Nada se pierde
Todo se transforma

- Jorge Drexler

Um fim de semana transformador, para todos... :-)

o sagrado está nos detalhes






Um deslumbramento visual este Kingdom of Plants ("Reino das Plantas"), documentário da BBC realizado nos Kew Gardens, Londres, santuário mundial da UNESCO desde 2003. Porque a beleza - e o sagrado - estão nos detalhes; e os milagres estão acontecendo aqui mesmo, e agora.

Via Hypeness

os bebês falam


"O que vou lhes contar ocorreu na Maison Verte, instituição parisiense de acolhimento de crianças de zero a três anos, criada pela psicanalista Françoise Dolto.

Quando na juventude de minha formação psicanalítica, tive a oportunidade de passar algumas tardes naquele local, acompanhando o trabalho de Dolto, já, então, ícone da psicanálise dita infantil.

Em uma tarde, um casal relativamente jovem chegou para a consulta com cara de desespero. Traziam um bebê nos braços, o qual aparentava uma fraqueza importante. Deveria ter uns três ou quatro meses de vida.

Dolto, cheia de atenção vigilante e afetuosa, ficou sabendo dos pais que ao desespero da criança que não comia, razão por estar esquálida, somava-se a preocupação com o desemprego do pai, a sobrecarga da mãe, e as contas que não fechavam no mês.

Assisti, em seguida, Françoise Dolto se dirigir diretamente ao bebê, sem qualquer atenção ao fator compreensão, e lhe explicar, olhos nos olhos, que ela, Dolto, entendia muito bem que ele não quisesse comer, uma vez que sua chegada poderia ser pensada como em má hora, e que o melhor talvez fosse desaparecer. Contestou, no entanto, afirmando que ele estava enganado, pois sendo tão querido e esperado, sua morte precoce retiraria dos seus pais o único efetivo alento naquele momento difícil de vida. E assim se despediu dos três – filho, mãe e pai –dando-lhes um retorno para a semana seguinte. Quando saíram, Dolto me disse: -'Você vai ver só o que vai acontecer'.

No segundo encontro, confirmando a previsão da analista, eram outras pessoas que estavam ali. O bebê estava comendo, e bem.

Ao final do atendimento, a doutora me falou: -'Você viu como os bebês falam? Você viu a prova?'. Aí, para mim, foi demais. Com a delicadeza devida, contestei que não era que bebês falassem, mas que – como Lacan havia demonstrado no estádio do espelho... – ao ela falar com o bebê, estava realmente falando a seus pais que, por conseguinte, tinham mudado sua posição e possibilitado a alteração sintomática.

Dolto não me deixou avançar muito em minha peroração. –'Sim, sim – me retorquiu – eu também conheço o ‘seu Lacan’ e bastante bem. Além de companheiros de toda uma vida, somos mesmo muito amigos. Agora, que ele o diga com o espelho, é interessante, quanto a mim, digo e mostro – como você viu – que os bebês compreendem e sabem falar'.

Pano rápido."

- Jorge Forbes (compartilhado por Marcus Quintaes)

a si mesmo


A vida não é para você encontrar a si mesmo. É para você criar a si mesmo.

- George Bernard Shaw

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

se não falas

Walter Beiter

Se não falas, vou encher o meu coração
Com o teu silêncio, e agüentá-lo.
Ficarei quieto, esperando, como a noite
Em sua vigília estrelada,
Com a cabeça pacientemente inclinada.

A manhã certamente virá,
A escuridão se dissipará, e a tua voz
Se derramará em torrentes douradas por todo o céu.

Então as tuas palavras voarão
Em canções de cada ninho dos meus pássaros,
E as tuas melodias brotarão
Em flores por todos os recantos da minha floresta.

- R. Tagore, daqui

a sabedoria do silêncio


(...) Se realmente há algo que não sabe, ou para que não tenha resposta, aceite o fato.

Não saber é muito incômodo para o ego, porque ele gosta de saber tudo, ter sempre razão e dar a sua opinião muito pessoal. Mas, na realidade, o ego nada sabe, simplesmente faz acreditar que sabe.

Evite julgar ou criticar. O TAO é imparcial nos seus juízos: não critica ninguém, tem uma compaixão infinita e não conhece a dualidade.

Cada vez que julga alguém, a única coisa que faz é expressar a sua opinião pessoal, e isso é uma perda de energia, é puro ruído. Julgar é uma maneira de esconder as nossas próprias fraquezas.

(...) Tudo o que o incomoda nos outros é uma projeção do que não venceu em si mesmo.
Deixe que cada um resolva os seus problemas e concentre a sua energia na sua própria vida. Ocupe-se de si mesmo, não se defenda.

Quando tenta defender-se, está a dar demasiada importância às palavras dos outros, a dar mais força à agressão deles.

Se aceita não se defender, mostra que as opiniões dos demais não o afetam, que são simplesmente opiniões, e que não necessita de os convencer para ser feliz.

O seu silêncio interno torna-o impassível. Faça uso regular do silêncio para educar o seu ego, que tem o mau costume de falar o tempo todo. Pratique a arte de não falar.

Tome algumas horas para se abster de falar. Este é um exercício excelente para conhecer e aprender o universo do TAO ilimitado, em vez de tentar explicar o que é o TAO.

Progressivamente desenvolverá a arte de falar sem falar, e a sua verdadeira natureza interna substituirá a sua personalidade artificial, deixando aparecer a luz do seu coração e o poder da sabedoria do silêncio. (...)

(Texto taoísta na íntegra aqui.)

instruções para os dias ruins


Os dias ruins existem mesmo. Calma. Relaxe os punhos. Devagarzinho, vá abrindo as suas mãos. Solte. Confie. Saiba que agora é só um momento - e, se hoje não podia ser pior, entenda que amanhã este dia já terá terminado. Seja gentil. Aceite as mãos estendidas para você, se oferecendo para tirá-lo deste lugar de onde você não está conseguindo escapar. Seja diligente. Esfregue o céu cinzento até limpá-lo. Perceba que cada nuvem escura não passa de uma cortina de fumaça que nos deixa cegos para a verdade - e a verdade é que, quer os vejamos ou não, o sol e a lua continuam no mesmo lugar, e a luz continua existindo... sempre.

Seja objetivo. Apesar da tentação de dizer "está tudo bem, eu estou bem", seja honesto. Diga como está se sentindo sem medo nem culpa, sem remorso nem complicação. Seja lúcido na sua explicação, seja cristalino em sua exposição. Se lhe passar pela cabeça, por um segundo que seja, que ninguém mais sabe o que você está passando, aceite o fato de que você está enganado: todo mundo é assaltado de vez em quando pela respiração ofegante do desespero; a dor faz parte da condição humana, e só esse fato basta para torná-lo membro de uma multidão.

Nós, azarões famintos; nós, que acordamos ao nascer do sol; nós, que driblamos as dificuldades - nós vamos nos ancorar em nossa própria serenidade. Vamos fincar pé no chão e nos preparar para a batalha. A vida virá te enfrentar armada com tempos difíceis e escolhas penosas, mas sua voz é sua arma e suas ideias, munição. Não há reforços sobrando; não perca de vista que, assim que este instante passar, deixará de ser presente para tornar-se passado. Portanto, seja um espelho e reflita sua própria imagem, e mantenha acesa a lembrança de quando você achava que isto tudo seria difícil demais e você jamais conseguiria. Lembre-se de quando você poderia ter desistido - mas escolheu continuar.

Disponha-se a perdoar. Viver com o fardo da raiva não é viver. Manter seu foco na ira só vai alienar você de suas reais necessidades. Tanto o amor quanto o ódio são feras selvagens, e a que você alimentar é que vai crescer. Seja persistente. Seja a graminha que brota na fenda do piso - e é linda simplesmente por não saber que não deveria crescer ali. Seja resoluto. Declare o que para você é a verdade de uma maneira que traduza a firmeza com que você a vive.

Se você estiver em um bom dia, tenha consideração. Um simples sorriso pode ser o kit de primeiros socorros de que alguém mais precisa. Se você acreditar, com total sinceridade, que está fazendo tudo o que está ao seu alcance - faça mais.

Os dias ruins existem - aqueles dias em que o mundo pesa nos seus ombros por tanto tempo que você começa a procurar alguma saída fácil. Há os momentos em que a sede de alegria parece implacável. Quando você se pegar fingindo que está tudo bem, quando evidentemente não está, dê uma olhada no seu ponto cego - e veja que o amor ainda está ali. Seja paciente. Todo pesadelo tem um começo, mas todo mau dia tem um fim. Ignore o que os outros disseram de você. Eu digo que você é meu amigo. Ajude-nos compreender a urgência da sua crise. O silêncio só gera mais silêncio.

Portanto, fale e se faça ouvir. Uma palavra de cada vez, se expresse, diga o que está acontecendo na sua vida. Se ninguém prestar atenção, fale mais alto. Faça barulho. Fique de pé e se abra. A esperança, nesses casos, não basta. Você vai precisar de alguém em quem se escorar. Na improvável eventualidade de você não ter ninguém, olhe bem. Todos temos o dom da escuta. Os surdos o ouvirão com seus olhos. Os cegos o verão com as mãos. Exponha seu coração nas bancas de jornais, permita que leiam suas manchetes. Admita que os dias ruins existem, que existem as noites impossíveis. Ouça os relatos de quem já esteve lá, mas conseguiu voltar. Estes lhe dirão que você pode erguer montanhas de sofrimento, pode ir embora, pode sumir, pode até vestir-se de luto e tristeza - mas, quando chegar amanhã, troque de roupa.

Todo mundo conhece a dor, mas ninguém deve carregá-la para sempre. Ninguém deve se aferrar a ela. Assim, tenha a certeza de que, qualquer que seja a dor de agora, ela logo ficará para trás. E, quando alguém perguntar se está tudo bem, saiba que, para alguns de nós, é a única maneira que conhecemos de dizer:

"Calma. Relaxe os punhos. Devagarzinho, vá abrindo as suas mãos. Solte..."

- Shane Koyczan, via

Vídeo compílado por Jon Goodgion com imagens do documentário "Life in a Day", de Kevin Macdonald.

poema de natal


Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos —
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.
Assim será nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos —
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito o que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez de amor
Uma prece por quem se vai —
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte —
De repente nunca mais esperaremos…
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.

- Vinicius de Moraes, via

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

criação


“No início já havia tudo.
Mas Deus era cego
e, perante tanto tudo,
o que ele viu foi o Nada.
Deus tocou a água
e acreditou ter criado o oceano.
Tocou o chão
e pensou que a terra nascia sob os seus pés.
E quando a si mesmo se tocou
ele se achou o centro do Universo.
E se julgou divino.
Estava criado o Homem.”

- Mia Couto