quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

quantas vezes o mundo vai acabar?


Penso que só nós, humanos, podemos contar uma história que começa assim: “Foi logo depois que o mundo acabou. As águas baixaram, a enorme arca encalhou no flanco de uma planície e a vida rotineira recomeçou com suas esperanças de sempre, inclusive a de poder, um dia, terminar...”

A arca de Noé não era um Titanic, embora o Titanic tivesse uma inconfundível inspiração mitológica. Mas o Titanic, aquele navio inafundável, fabricado com a certeza da ciência, submergiu. Enquanto a Arca — construída na base da fé — não soçobrou. Por outro lado, o Titanic levava milionários num passeio luxuoso e imigrantes pobres que iam “fazer a América” naqueles velhos tempos que ela ainda podia ser feita.

É claro que ambos os navios tinham um povo escolhido que sobreviveria. No caso do Titanic, testemunhamos a sobrevivência habitual dos milionários e dos espertos. Os de terceira classe morreram tão escandalosamente que as regras foram drasticamente modificadas. O Titanic e a Arca de Noé representam, cada qual a seu modo, um fim de mundo.

A Arca, porém, como um instrumento de salvação, não podia afundar. Ela corrigia erros. Foi uma advertência e um recall do Criador para a humanidade. Os filhos de Adão e Eva, híbridos de barro, carne, osso, sopro divino e bestialidade não iam dar certo. Para quem vive querendo começar a vida; para quem tem arrependimentos intransponíveis e gostaria de zerar sua existência, a passagem bíblica oferece um conforto: até mesmo o Criador — onisciente, onipotente e onipresente — teve seus momentos de dúvida. Valeu a pena criar um intermediário, um ser entre os animais e os anjos?

Não sabemos. O que se conhece, entretanto, é que sempre há um grupo que se imagina escolhido e, volta e meia, diz que o mundo vai acabar. Os eleitos são salvos por alguma Arca de Noé ou foguete intergaláctico como nos velhos e esquecidos contos de Isaac Asimov e de Ray Bradbury. São os escolhidos que dão testemunho de como o mundo acabou e — graças a um profeta — foi refeito na esperança de um aperfeiçoamento moral que custa e, às vezes, chega.

No fundo, como diz a Dra. Camélia, uma psicanalista admiradora de antropologia, esses mitos não falam apenas do fim do mundo, falam — isso sim — da imortalidade dos eleitos. Daqueles que estão além do mundo porque seguiram regras morais mais fortes que o próprio mundo — esse planeta que, no fundo, é frágil e terminal se não segue algum mandamento.

Vi o mundo acabar muitas vezes, disse o professor. Primeiro pela água, depois pelo fogo, depois pelas bombas atômicas do Dr. Strangelove. De 1000 passarás, mas a 2000 não chegarás! Estávamos em 1948 e faltava tanto para o 2000 que eu me perdi. Afinal, havia muitas coisas mais importantes para pensar e fazer do que me preparar para o fim do mundo. E, no entanto, essa década de 2000 foi clara na demonstração de que eu era mais um náufrago, a ser salvo pela paciência e pela generosa ternura humana.

Por que será que, mesmo nestes tempos de utilitarismo racional e de realismo capitalista, tanta gente ainda acredita no fim do mundo?

Porque eles vão realizar uma façanha e tanto: vão sobreviver ao planeta e sentir aquela onipotência apocalítica típica dos dos milenaristas. Mas, tirando as fantasias, o mito do fim do mundo revela também uma insatisfação permanente com a vida, tal como a experimentamos: com suas imperfeições, traições, picuinhas, faltas e covardias: com a impossibilidade de seguir os ideais. Quem sabe, diz esse mito de fim de mundo, um dia tudo isso vai mudar e a vida neste mundo será justa e perfeita promovendo, enfim, o encontro da teoria com a prática?

No fundo, o ocidente progressista e capitalista que acumula cada vez mais dinheiro sempre foi tributário soluções finais para a vida.

Outros povos se satisfazem em aceitar o que reconhecem como parte e parcela de contradições impossíveis de escapar quando se vive em coletividade. Mas nós, crentes no desenvolvimento da espécie e nos estágios evolutivos, tendemos a confundir progresso técnico com avanço moral e pensamos que nossas bombas atômicas são superiores aos arcos e flechas dos nossos irmãos selvagens.

Neste sentido, o mito do fim do mundo seria também uma advertência ao nosso estilo de vida fundado num consumo e numa sofreguidão inesgotáveis. Um modo de dispor do planeta e dos seus recursos que impedem o seu reconhecimento humano.

Essa, penso, seria o centro dessa última onda de fim de mundo que acaba de passar. Um retorno apocalítico da totalidade num universo marcado por uma cosmologia brutalmente individualista.

Mal o professor pronunciou essas palavras e logo um aluno levantou a mão e perguntou: mas isso é mito ou realidade? Afinal, não estamos mesmo chegando ao final de um estilo de vida egoísta no qual pensamos cada qual em nós mesmos e todos apenas no nosso país?

- Roberto Damatta, para O Globo, 30-01-13 (via)

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

centrífuga


Será que nossa maior aspiração é mesmo fugir da realidade?

* * *

Clarice Lispector:

"Deus sabe o que faz: acho que está certo o estado de graça não nos ser dado frequentemente. Se fosse, talvez passássemos definitivamente para o outro lado da vida, que esse outro lado também era real mas ninguém nos entenderia jamais: perderíamos a linguagem em comum." (em Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres)

"Por que não ficar dentro, sem tentar atravessar até a margem oposta?
Ficar dentro da coisa é a loucura." (em A paixão segundo G.H.)

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

nós somos o tempo



“O tempo não está fora de nós, nem é algo que passa diante dos nossos olhos como os ponteiros do relógio: nós somos o tempo, não são os anos que passam, mas nós que passamos. O tempo possui uma direção, um sentido, porque ele é nós mesmos.

O ritmo realiza uma operação contrária à de relógios e calendários: o tempo deixa de ser medida abstrata e volta a ser o que é: algo concreto e dotado de uma direção. Contínuo emanar, perpétuo ir além, o tempo é um permanente transcender-se. Sua essência é o “mais” — e a negação desse mais. O tempo afirma o sentido de um modo paradoxal: possui um sentido — o ir além, sempre fora de si – que não cessa de negar a si mesmo como sentido. Destrói-se e, ao se destruir, repete-se, mas cada repetição é uma mudança. Sempre o mesmo e a negação só mesmo. Assim, nunca é apenas medida, sucessão vazia. Quando o ritmo se desdobra à nossa frente, algo passa com ele: nós mesmos. No ritmo há um “ir para” que só pode ser elucidado se, ao mesmo tempo, se elucida o que somos nós. [...]

A relação entre ritmo e palavra poética não é diferente da existente entre dança e ritmo musical: não se pode dizer que o ritmo é a representação sonora da dança; tampouco que a dança seja a tradução corporal do ritmo. Todas as danças são ritmos; todos os ritmos, danças. No ritmo já está a dança e vice-versa.”

- Octavio Paz, via

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

solidão


A maior solidão é a do ser que não ama. A maior solidão é a do ser que se ausenta, que se defende, que se fecha, que se recusa a participar da vida humana. A maior solidão é a do homem encerrado em si mesmo, no absoluto de si mesmo, e que não dá a quem pede o que ele pode dar de amor, de amizade, de socorro. O maior solitário é o que tem medo de amar, o que tem medo de ferir e de ferir-se, o ser casto da mulher, do amigo, do povo, do mundo. Esse queima como uma lâmpada triste, cujo reflexo entristece também tudo em torno. Ele é a angústia do mundo que o reflete. Ele é o que se recusa às verdadeiras fontes da emoção, as que são o patrimônio de todos, e, encerrado em seu duro privilégio, semeia pedras do alto da sua fria e desolada torre.

- Vinicius de Moraes

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

permanências


"Se Deus tivesse designado suas criaturas inteligentes para viajar à assustadora velocidade de 25 quilômetros por hora, teria nos prevenido pela boca dos profetas. (...) Trata-se de um expediente de Satanás para levar as almas imortais para o inferno." - de um comitê britânico de educação, sobre as primeiras ferrovias, em 1830.

Ah, a velha e boa arte de se apropriar do Sagrado e distorcê-lo segundo nossos interesses e visão de mundo. De preferência, para que tudo permaneça igual.

E, no entanto, creio que o Sagrado seja dinâmica e transformação, não paralisia e estagnação. Êxtase, não estase.

E a única coisa que não muda é que tudo muda o tempo todo; só a impermanência permanece.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

2013: coragem para se renovar


Há mais de quinze anos atrás publiquei no Jornal do Brasil, um artigo com o título “Rejuvenescer como águias”. Relendo aquelas reflexões me dei conta de como elas são ainda atuais e adequadas aos tempos maus sob os quais vivemos e sofremos. Retomo-as e aprofundo-as para alimentar nossa esperança enfraquecida pelas ameaças que pesam sobre a Terra e a Humanidade. Se não nos agarrarmos a alguma esperança, perdemos o horizonte de futuro e corremos o risco de nos entregarmos ao desamparo imobilizador ou à resignação estéril. Neste contexto lembrei-me de um mito da antiga cultura mediterrânea sobre o rejuvenescimento das águias.

De tempos em tempos, reza o mito, a águia, como a fenix egípcia, se renova totalmente. Ela voa cada vez mais alto até chegar perto do sol. Então as penas se incendeiam e ela toda começa a arder. Quando chega a este ponto, ela se precipita do céu e se lança qual flecha nas águas frias do lago. E o fogo se apaga. Mas através desta experiência de fogo e de água, a velha águia rejuvenesce totalmente: volta a ter penas novas, garras afiadas, olhos penetrantes e o vigor da juventude. Seguramente este mito constitui o substrato cultural do salmo 103 quando diz:”O Senhor faz com que minha juventude se renove como uma águia”.

Para entender esse relato, precisamos revisitar Gaston Bachelard e C.G. Jung que entendiam muito de mitos e de seu sentido existencial. Segunda esta interpretação, fogo e água são opostos. Mas quando unidos, se fazem poderosos símbolos de transformação.

O fogo simboliza o céu, a consciência e as dimensões masculinas no homem e na mulher. A água, ao contrário, a terra, o inconsciente e as dimensões femininas no homem e na mulher.

Passar pelo fogo e pela água significa, portanto, integrar em si os opostos e crescer na identidade pessoal. Ninguém ao passar pelo fogo ou pela água permanece intocado. Ou sucumbe ou se transfigura, porque a água lava e o fogo purifica.

A água nos faz pensar também nas grandes enchentes como conhecemos em 2010 nas cidades serranas do Estado do Rio. Com sua força tudo carregaram, especialmente o que não tinha consistência e solidez. São os infortúnios da vida.

O fogo nos faz imaginar o cadinho ou as fornalhas que queimam e acrisolam tudo o que é ganga e não é essencial. São as notórias crises existenciais. Ao fazermos esta travessia pela “noite escura e medonha”, como dizem os mestres espirituais, deixamos aflorar nosso eu profundo sem as ilusões do ego. Então amadurecemos para aquilo que é em nós autenticamente humano e verdadeiro. Quem recebe o batismo de fogo e de água rejuvenesce como a águia do mito antigo.

Mas abstraindo das metáforas, que significa concretamente rejuvenescer como a águia? Significa entregar à morte todo o velho que existe em nós para que o novo possa irromper e fazer o seu curso. O velho em nós são os hábitos e as atitudes que não nos engrandecem: a vontade de ter razão e vantagem em tudo, o descuido consigo mesmo, com a casa, com nossa linguagem e com o desrespeito para com a natureza, bem como a falta de solidariedade para com os necessitados, próximos e distantes. Tudo isso deve ser entregue à morte para podermos inaugurar uma forma de convivência com os outros que se mostre generosa e cuidadosa com a nossa Casa Comum e com o destino das pessoas. Numa palavra, significa morrer e ressuscitar.

Rejuvenescer como águia significa também desprender-se de coisas que um dia foram boas e de ideias que foram luminosas mas que lentamente, com o passar dos anos, se tornaram ultrapassadas e incapazes de inspirar um caminho para o futuro. A crise atual perdura e se aprofunda porque os que controlam o poder tem conceitos ultrapassados, refutados pelos fatos e incapazes de oferecer respostas.

Rejunecer como águia significa ter coragem para recomeçar e estar sempre aberto a escutar, a aprender e a revisar. Não é isso que nos propomos a cada novo ano?

Que o ano de 2013 recém inaugurado, seja oportunidade de perguntar o quanto de galinha existe em nós que não quer outra coisa senão ciscar o chão e o quanto de águia há ainda em nós, disposta a rejuvenescer ao confrontar-se valentemente com os tropeços e as crises da vida e buscar um novo paradigma de convivência.

E não podemos esquecer aquela Energia poderosa e amorosa que sempre nos acompanha e que move o inteiro universo. Ela nos habita, nos anima e confere permanente sentido de lutar e de viver. Seu nome é Spiritus Creator que nunca nos pode faltar senão perdemos a vitalidade e a esperança.

- Leonardo Boff (via)

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

viver de amor

José:

“(...) uma pessoa pode, enfim, por uma perda da pessoa a quem ama, por exemplo, suicidar-se, a isso chamaria morrer de amor. Agora não há nenhuma doença do amor, ou melhor, as doenças do amor são de outra natureza, são o cansaço, são o aborrecimento, são a rotina, essas são as doenças do amor. Agora, morrer de amor. Não sei.”



Pilar:

“Pode-se morrer de sofrimento, pode-se morrer de desgosto... Disso que falávamos antes, de perversão, da perversão dos sentimentos que podem ir consumindo, mas o amor é expansivo, enche tudo. Não se pode morrer de amor. Creio que se vive de amor.”

JOSÉ E PILAR - Conversas inéditas, de Miguel Gonçalves Mendes

(Originalmente aqui)

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

o caminho de abraão: uma estrada para o diálogo


Patriarca das três maiores religiões do monoteísmo semítico, Abraão é uma figura referencial para judeus, cristãos e muçulmanos. Seu itinerário geográfico e espiritual pode se transformar também em eixo de convergência no conturbado cenário do Oriente Médio


Por Nilton Bonder


Uma iniciativa bastante ousada e criativa da universidade de Harvard já há vários anos tenta estabelecer uma rota de peregrinação pelo Oriente Médio trilhando a caminhada de Abraão desde sua cidade natal até o local de seu sepulcro. A ideia se baseia no renascimento de trilhas com valor histórico-espiritual, nos moldes do Caminho de Santiago de Compostela. Esse caminho de peregrinação medieval havia quase que perdido por completo seu significado no mundo moderno quando foi reativado nas últimas duas décadas. No ano passado, cerca de um quarto de milhão de pessoas percorreu parcial ou integralmente os seus mais de seiscentos quilômetros.

A união do aspecto físico, o sacrifício de caminhar, com os múltiplos encontros que se processam durante o percurso fizeram del Camino um ícone de integração e espiritualidade.

Com esse espírito, o Departamento de Negociação de Conflitos de Harvard desenhou um projeto que se estenderia por vários anos, tentando estabelecer uma rota semelhante no Oriente Médio. Abraão é o patriarca e a inspiração das três grandes religiões semíticas, judaísmo, cristianismo e islamismo, um pai de toda a região. Se fosse possível criar um caminho que cruzasse vários países, gerando desenvolvimento do comércio e do turismo, bem como promovendo seu intercâmbio cultural, sem dúvida isso constituiria uma contribuição e um avanço na questão da paz regional. Mais do que focar as diferenças e desavenças, o Oriente Médio muito poderia lucrar em enfatizar semelhanças e compartilhamentos. Seria uma maneira de reforçar plataformas de integração que alicerçassem os esforços diplomáticos, visando maior estabilidade e paz para a região.

Hospitalidade e boa vizinhança
Abraão, o pai das multidões, é pai de todas as ramificações religiosas da região. E se não for por força do pai, quem estabelecerá que os filhos todos se sentem à mesa? Mais, Abraão é um pai que dedicou sua vida à hospitalidade e à boa vizinhança. Um pai que tem como qualidade maior ser um homem de bem – não um herói, nem um mago, nem um bem-sucedido, mas um homem com suas convicções e com sua humildade. E de onde vinham seus poderes? Não há característica maior de sua personalidade do que o andarilho, o peregrino em busca de sua Terra Prometida.

Entender o significado profundo de Abraão corresponde a entender o ser humano como um caminhante entre seu nascer e seu sepulcro. A terra, o chão por onde ele se conhece e se mantém, talvez seja mais um meio do que um fim, mais um cenário do que uma propriedade.

A peregrinação é uma prática bastante antiga. Desde que o homem se tornou sedentário, o ato de deixar a terra natal e seguir em uma direção que esteja atrelada a um sonho ou projeto faz parte dos recursos espirituais humanos. É a base do livro do Gênesis, que é a saga de um andarilho, cujo sonho é tão singelo e básico, mas que está sempre por se realizar ou ameaçado de se perder. Talvez seja simbólico da vida que a tenhamos sempre em movimento, sempre em risco e sempre entre realizar-se no presente e no futuro. Talvez simbólico de uma condição temporária, um equilíbrio instável, onde nossa existência espiritual se assemelha à crença de que tubarões não podem parar de se movimentar para não morrerem asfixiados.

“Sai de tua casa, de tua parentela!”
Seja como for, a idéia de peregrinação está incrustada na espiritualidade. Os judeus peregrinavam a Jerusalém três vezes ao ano, os muçulmanos, a Meca, os católicos, a vários pontos de valor histórico e espiritual. Também os mestres chassídicos se impunham o golus, a peregrinação cega, sem destino, quando deveriam abandonar sua soberba e despir-se de suas ilusões.

O convite de Harvard previa sairmos de Harã, no centro-sul turco, em direção a Hebrom ou Al Khalil, “o amigo [de Deus]”, passando pela Síria, parte do Líbano, Jordânia, Palestina e Israel. A primeira é a cidade identificada com seu nascimento, a segunda, com seu sepulcro. Na verdade, o texto bíblico aponta Ur, hoje no Iraque, como sendo o local de nascimento de Abraão. Como eu viria a descobrir, na viagem existem inúmeras lendas e tradições sobre o local de nascimento de Abraão. Harvard assumiu Harã como ponto de partida inicial por razões práticas e de segurança, uma vez que a instabilidade político-militar no Iraque é proibitiva a qualquer projeto dessa natureza. Mas a verdade é que se Harã não é o berço da natalidade biológica de Abraão, é o local de seu despertar espiritual e de seu nascimento para a história universal. Lá ele ouve o comando divino: “Sai de tua casa, de tua parentela e de tua cultura para a terra que te mostrarei!”.

Nosso projeto era estar geográfica e temporalmente nas coordenadas de Abraão. Eu teria de sair do Rio e me encontrar com o grupo que realizaria a primeira expedição do roteiro completo da caminhada de Abraão partindo de Harã.

Via Paris, Istambul e Sanliurfa, cheguei a Harã na tarde da sexta-feira e me hospedei no único hotel da cidade. Lá encontraria os companheiros de viagem. Chovia, na terra de Noé. Mais, era uma inundação, que, graças aos céus, foi menor do que a experimentada pelo personagem bíblico. Isso não impediu que estivéssemos em uma pequena arca composta de americanos estudiosos da área de negociação, membros de ONGs pela paz, especialistas em tracking (longas caminhadas), um representante católico, um muçulmano e eu, o judeu.

A missão do grupo era executar a caminhada, reunir-se com lideranças locais apresentando o projeto e refletir sobre os múltiplos significados e aspectos do trajeto. Obviamente, nenhum dos três objetivos foi esgotado. Em alguns trechos caminhamos, mas tivemos de viajar também em veículos, dada a precariedade do caminho, ainda muito longe de se tornar hospitaleiro. Também a solidariedade incerta ao projeto por parte de alguns governos gerava certa tensão, por gozarmos ora da condição de bem-vindos, ora de recepções menos cordiais. E a riqueza simbólica do trajeto ainda tem muito por ser desvendada e desenvolvida.

No entanto, para mim, o judeu, o rabino e o peregrino, foi uma viagem, no sentido popular da palavra. Hospedar-me em terras tão cheias de significado, de familiaridade por conta da ancestralidade, alguém que se sente tão em casa naquele mundo, ou sente estranheza por conta dos desacordos e da beligerância ainda vigentes entre Israel e o mundo árabe, teve o efeito de uma verdadeira peregrinação.

Quando Deus se revela a Moisés no deserto, na forma de uma sarça ardente que não se consome, ordena-lhe que retire os sapatos, porque pisava em uma terra santa. Retirar os sapatos simboliza sair do habitual, abrir mão de certezas e estar sagradamente exposto ao novo e a diferentes possibilidades. Passar por aquelas terras abraâmicas sem tirar os sapatos seria por demais herético. E foi o que fiz, despi-me do olhar judaico, do olhar rabínico, das certezas e dos dogmas, para acolher o convite do anfitrião. Esse anfitrião não eram países ou localidades, era o humano que habita todas as regiões deste planeta. Esse humano que pode ser tão cruel e perverso, mas que sabe repartir pão e que reconhece no peregrino, no estrangeiro, sua própria condição.

Diz-se que o peregrino é aquele que começa com um grande equipamento tentando antecipar qualquer adversidade do caminho e termina sem nenhuma bagagem. Pelo caminho vai descobrindo que a hospitalidade humana provê e que o ser humano se faz agente de Deus. É o encontro da gentileza com o pouco precisar, da solidariedade e do despojamento. Nada mais significativo do que deixar pelo caminho as certezas, as defesas carreadas para a viagem que teria de fazer enfrentar a visão do outro, dos que viajavam comigo e de nossas diferenças, e dos vários povos com suas dores e esperanças.

Prédios de 3 a 4 mil anos
Desfilaram diante de meus olhos o Eufrates, onde se banharam Adão e Eva; a cidade de Alepo, com sua magia, berço de uma comunidade judaica afluente, cujo bairro está intacto porque os vizinhos ficaram constrangidos de tomar para si suas casas, dado o respeito que tinham pelos judeus; ou Damasco, com sua impressionante arquitetura, de uma antigüidade tal que faz de Jerusalém uma cidade “moderna”. Prédios de 3 a 4 mil anos e jovens pelas ruas – poderiam ser jovens em Tel Aviv, mas eram jovens em Damasco. Um mercado de Aladim, história e pré-história por todos os lados. Entrar no Museu Nacional e ver a sinagoga de Dura Europas, a mais antiga sinagoga preservada. Tudo isso acompanhado de muitos encontros com pessoas, em meio a um grupo que se esforçava por estar emocional e culturalmente aberto, não defendido em relação a suas crenças e convicções.

O deserto sírio, o mosteiro encravado no último reduto antes do implacável deserto que ia de Palmira até o oriente na rota da seda. As inúmeras tendas de Abraão, que pontilharam lugares remotos cujos nomes não me lembro. A Jordânia e as estradas mais antigas da humanidade, Amã com sua realeza e suas idiossincrasias. Os territórios palestinos com sua dor que malignou em ira. Retorno à infância de um ódio que aponta: “Quem começou foi ele”. Território do desencontro de todos os que querem legitimar a si e expõem sua “imparcialidade”. O lugar onde as versões se multiplicam antes que se possa dar entendimento à última surgida. E a confusão de Babel se impõe. E a vileza do entendimento pelas armas e pela pedra se sobressai à escuta e ao bom senso. Estar em reunião com os mufti de Hebrom e sua percepção dos meus irmãos judeus, de mim como parte, com tanta desconfiança e tanto ressentimento, e não ser refratário a esses sentimentos. Estar com parlamentares do Hamas e sua fala tão universal de radicalidade. Poderiam ser do MST, no Brasil, falando sobre latifundiários, a mesma suspeição e prevenção construídas da percepção de humilhação pelo outro, de aviltamento pelo outro. Conhecer a cerca do outro lado. De um lado representando a segurança e o direito de não ser morto numa pizzaria ou num ponto de ônibus. Do outro, a insuportável semelhança com o gueto, com prisões e com confinamento.

Poder olhar o soldado israelense não do lado onde ele é o herói, aquele que defende muito mais do que um país e monta guarda contra todo o sofrimento de um povo violentado e humilhado por milênios. Porém, vê-lo desse lado diferente, imobilizando, estruturado para reprimir e submeter, faz ver que não há muro que não tenha um outro lado. E pelo olhar de Abraão mais dolorosa ainda é paisagem. Com certeza ele não imaginava que por tantas gerações ainda se seguiria o sacrifício de ambos os filhos.

Mas por mais dolorosa que seja a realidade de um conflito e as cicatrizes profundas que infligiu, o Caminho de Abraão tem esse maravilhoso potencial de trocar os olhares. Se cada um fosse conhecer a realidade desde o muro de lá, talvez pudesse honrar mais a herança de seu patriarca. Quando se conhece o que é o muro do lado de lá, o muro por definição cai. É que ele é constituído justamente para não olhar o outro lado, para produzir a sensação de que o outro desapareceu.

Hoje estão mapeados trechos do Caminho pela Turquia e Jordânia. A idéia é prosseguir e, com a ajuda das comunidades locais, estabelecer a infra-estrutura mínima para que grupos iniciem sua jornada. Eventos também estão sendo promovidos pelo mundo, apresentando a proposta do Caminho de Abraão. Em Paris, um grupo caminhou de uma sinagoga a uma igreja e a uma mesquita no último mês de abril. Caminhadas semelhantes são imaginadas em São Paulo e no Rio de Janeiro.

A pluralidade cultural e a diversidade de paisagens inundam os olhos de quem percorre o Oriente Médio. Ali está mais do que a história de várias culturas, está a pré-história de toda a humanidade. A figura de Adão responde pela existência de uma única família humana. Já a de Abraão sonha com a paz entre irmãos. Uma paz que Adão não alcançou com os seus. Uma paz que se estenda para além dos vínculos de sangue e que abra a tenda ao peregrino nas quatro direções. Talvez só quando seus filhos caminhem por seu caminho possam descobrir a humildade de Abraão. Humildade que não o angustiou por não ser o proprietário da terra para a qual migrou. Afinal, mais do que possuí-la por sua efêmera existência, ele se fez pai e senhor de toda ela para sempre.

O “amigo de Deus” é aquele que se faz “amigo dos homens”. Um modelo ainda por ser compreendido no futuro.

Nilton Bonder é rabino da Congregação Judaica do Brasil, coordenador para a América Latina do Movimento Jewish Renewall, ex-presidente do Iser (Instituto Superior de Estudos da Religião) e autor de dezessete livros. Texto publicado originalmente no Le Monde Diplomatique Brasil.

Saiba mais sobre o Caminho de Abraão no site

domingo, 6 de janeiro de 2013

um relato desconcertante


Hoje, 6 de janeiro, domingo da Epifania (que significa revelação, manifestação de Deus aos humanos), os cristãos celebram, com a visita dos Reis, sua segunda festa de Natal. O teólogo espanhol José Antonio Pagola tece algumas considerações a partir desse episódio (cf. Lucas 3, 15-1. 21-22).

Perante a Jesus se podem adotar atitudes muito diferentes. O relato dos magos nos fala da reação de três grupos de pessoas. Uns pagãos que o procuram, guiados pela pequena luz de uma estrela. Os representantes da religião do Templo, que permanecem indiferentes. E o poderoso rei Herodes, que só vê nele um perigo.

Os magos não pertencem ao povo eleito. Não conhecem o Deus vivo de Israel. Nada sabemos da sua religião nem do seu povo de origem. Só sabemos que vivem atentos ao mistério que se encerra no cosmos. O seu coração procura verdade.

Em algum momento acreditam ver uma pequena luz que aponta para um Salvador. Necessita saber quem é e onde está. Rapidamente se põem a caminho. Não conhecem o itinerário exato que têm de seguir, mas no seu interior arde a esperança de encontrar uma Luz para o mundo.

A sua chegada à cidade santa de Jerusalém provoca o sobressalto geral. Convocado por Herodes reúne-se o grande Conselho “dos sumos sacerdotes e dos escribas do povo”. A sua atuação é decepcionante. São os guardiães da verdadeira religião, mas não procuram a verdade. Representam o Deus do Templo, mas vivem surdos à sua chamada.

A sua segurança religiosa cega-os. Sabem onde deve nascer o Messias, mas nenhum deles se aproximará de Belém. Dedicam-se cultuar a Deus, mas não suspeitam que o Seu mistério é maior do que todas as religiões, e que tem os Seus caminhos para encontrar-se com todos os Seus filhos e filhas. Nunca reconhecerão a Jesus.

O rei Herodes, poderoso e brutal, só vê em Jesus uma ameaça para o seu poder e a sua crueldade. Fará todo o possível para eliminá-lo. A partir do poder opressor só se pode “crucificar” a quem traz a libertação.

Entretanto, os magos prosseguem em sua busca. Não caem de joelhos perante Herodes: não encontram nele nada digno de adoração. Não entram no Templo grandioso de Jerusalém: têm proibido o acesso: a pequena luz da estrela os atrai para a pequena terra de Belém, longe de todo o centro de poder.

Ao chegar, o único que veem é o “menino com Maria, sua mãe”. Nada mais. Um menino sem esplendor nem poder algum. Uma vida frágil que necessita do cuidado de uma mãe. É o suficiente para despertar nos magos a adoração.

O relato é desconcertante. A este Deus, escondido na fragilidade humana, não o encontram os que vivem instalados no poder ou encerrados na segurança religiosa. Revela-se a quem, guiado por pequenas luzes, procura incansavelmente uma esperança para o ser humano na ternura e na pobreza da vida.

Fonte (+)

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

doçura


"Doçura é a maestria dos sentidos. Olhos que vêem no fundo das coisas, ouvidos que escutam o coração das coisas, lábios que falam apenas a essência das coisas. Doçura é o resultado de uma longa jornada interior ao âmago da vida e a habilidade de lá permanecer e observar. A doçura procura pelo bem nas coisas, pois no seu coração reside a convicção de que o bem existe em algum lugar em tudo, é só ter paciência para descobri-lo." (Brahma Kumaris)

(Originalmente aqui)

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

zen

 Via

“O ódio não cessará pelo ódio, mas pelo amor apenas. Essa é a lei ancestral.” (Buda)

“Os ódios não cessam neste mundo pelo ódio, mas pelo amor, superando-se o mal com o bem." (Dhammapada 1,5)

"(...) Deste modo sereis os filhos de vosso Pai do céu, pois ele faz nascer o sol tanto sobre os maus como sobre os bons, e faz chover sobre os justos e sobre os injustos." (Mt 5, 45)

"Pois quem julga de forma estreita mal enxerga a si mesmo, pensa que possui a verdade e exclui a possibilidade de outras formas de percepção da realidade." (Bernardo Sorj, aqui - e aqui também.)

(Originalmente aqui)

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

1º de janeiro, dia universal da paz


Para o povo aimará, que vive na Bolívia e Peru, existem sete tipos de paz.

O primeiro tipo de paz é para dentro de cada um de nós. Com a saúde de nosso corpo, a clareza de nossa mente, a satisfação com nosso trabalho, a alegria com a pessoa que escolhemos para amar. Sem paz consigo mesmo, não há Paz.

O segundo tipo é para cima, paz com os espíritos de nossos antepassados, om o Deus de cada um. Sem paz com o mundo espiritual, ninguém fica totalmente em Paz.

A terceira paz é para frente, com o seu passado. Diferentemente dos homens brancos ocidentais, que põem o passado atrás, os aimarás o colocam adiante, por ser o visto, o vivido, o conhecido. Quem tem remorsos, culpas, dívidas não pagas, arrependimentos não pode alcançar a Paz.

A quarta paz é para trás, com o futuro de cada um. Pois quem teme o que virá, se apavora com o que terá de enfrentar, com a possibilidade de más notícias, não está em Paz.

O quinto tipo de paz é para o lado esquerdo, com os nossos familiares. Desavenças domésticas, disputas, queixas, ranger de dentes com a família e com amigos próximos impedem de se alcançar a Paz.

A sexta é para o lado direito, com nossos vizinhos. Estar pacificado na própria casa e em desavença com a casa ao lado traz impedimentos para a verdadeira Paz.

A sétima e última paz é para baixo, com a terra em que você pisa e de onde tira o seu sustento. Se você provoca a tempestade ou a seca, se o solo tremer você não terá a santa Paz.

Um ano de muita paz, para todos nós.

(Recebido, por e-mail, da amiga Zulêde Mesquita. Autor desconhecido)

o ano novo dentro de você


“Não precisa fazer lista de boas intenções para arquivá-las na gaveta. Não precisa chorar arrependido pelas besteiras consumadas nem parvamente acreditar que por decreto de esperança a partir de janeiro as coisas mudem e seja tudo claridade, recompensa, justiça entre os homens e as nações, liberdade com cheiro e gosto de pão matinal, direitos respeitados, começando pelo direito augusto de viver. Para ganhar um Ano Novo que mereça este nome, você, meu caro, tem de merecê-lo, tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil, mas tente, experimente, consciente. É dentro de você que o Ano Novo cochila e espera desde sempre.”

- Carlos Drummond de Andrade