segunda-feira, 6 de janeiro de 2014
profanidade do mundo e silêncio de deus
"(...) Não seria pertinente, no entanto, admitir como premissa iniludível que vivemos uma época de enfraquecimento da fé em Deus e da reflexão sobre Ele. Ainda que seja certo que a época moderna proclamou a inevitabilidade do declínio das religiões, chegando até a sustentar a tese da morte de Deus, a identificação da modernidade com o humanismo ateu carrega consigo uma redução insustentável. Com efeito, o projeto da modernidade engendrou a indiferença religiosa mais do que a negação de Deus. Ao mesmo tempo, a crise deste projeto demonstrou que uma sociedade, se não encontrar seu fundamento em uma Transcendência – seja dado a ela ou não o nome de Deus - se dissolverá lenta e inexoravelmente.
A proclamação do advento da assim chamada pós-modernidade e do pretenso “retorno” do religioso, permite entrever que é bastante inadequado decretar o banimento de Deus do horizonte humano. E que, ao contrário, a busca de Deus continua a agitar o coração da humanidade, sem levar em conta o risco corrido por todos os discursos “oficiais” sobre Deus de encontrar-se envelhecidos.
(...) O grande teólogo Karl Rahner afirma muito certeiramente que se a palavra “Deus”e mesmo sua memória fossem banidos definitivamente do pensamento e discurso humanos, isso não provaria a não existência de Deus. Pelo contrário, o ser humano é que teria desaparecido e mergulhado no nada, fracassando em seu projeto e vocação. Pois Deus é constitutivo do ser humano, em sua identidade em contínua auto-transcendência.
A fragmentação da pós-modernidade vai re-situar o problema de Deus a partir de um reencontro com o primado da alteridade. A partir daí emergirá um novo paradigma inter-subjetivo e relacional que reconduzirá a linguagem humana a encontrar as palavras para dizer o Absoluto pelo qual seu coração anseia. Aí talvez possa voltar a ter sentido uma vida fragmentada pelo estilhaçamento de uma compreensão global totalizante e uniformizante do mundo e da história.
O judeu-cristianismo coloca como caminho possível da identidade do “eu” o rosto do outro. Amar o outro como a si mesmo é, desde o Antigo Testamento, o maior mandamento, paralelo à grandeza de amar a Deus sobre todas as coisas. No Novo Testamento ambos são tomados, segundo Jesus, como resumo, síntese feliz da lei e dos profetas. No cristianismo, portanto, o ser humano é visto como alguém livre. Porém livre para amar. A liberdade não é concebida como uma heteronomia opressiva, no sentido de uma lei exterior que esmaga e destrói a subjetividade, mas é dom gratuito de Deus que coloca e recoloca sempre de novo o homem livremente no caminho do amor, no percurso em direção ao outro.
A visão cristã tenta dar um passo adiante nesse sentido, ao dizer que a liberdade não vem puramente de fora, mas está dentro do ser humano, como inscrição ali gravada, da interpelação epifânica, manifestativa do rosto do outro – do pobre, da viúva, do órfão, do estrangeiro – que institui para ele a única lei, que é a lei do amor. O caminho para Deus hoje, portanto, passa por sua descoberta no sofrimento e na fragilidade do outro. Disso deram testemunho todos os místicos – homens ou mulheres – do último século que, situados no epicentro da injustiça, da violência e do mal, experimentaram a vida em plenitude e a transmitiram como legado a nossa geração."
- Maria Clara Bingemer
Professora do Departamento de Teologia e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio
Publicado originalmente no Amai-vos.
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