quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

mensageiro de natal


Para mim, uma perfeita tradução do espírito do Natal: despertar e ir ao encontro do outro.

Gustavo Oliveira, estudante, 18 anos, narra ao repórter Roberto de Oliveira a sua experiência de escrever cartões natalinos para passageiros que transitam no terminal rodoviário Tietê, em São Paulo, o maior do Brasil.


"Ela chegou confiante. Puxou a cadeira na minha frente do outro lado da mesa. Sentou-se. Em suas mãos, passaram os quatro modelos de cartões de Natal que temos.

Olhou cuidadosamente cada um deles. Ensaiou pegar uma caneta, mas não avançou. Daí, ficou desconcertada. Cabisbaixa, olhou bem nos meus olhos e confessou com a voz engasgada que não sabia ler nem escrever.

Disse ter 23 anos de idade e ter deixado Manaus para trabalhar como doméstica em São Paulo. Veio mesmo atrás do marido. Era bem bonita.

Com ela, trouxe o filho, de sete anos. Tudo isso ela me contou ali, enquanto ensaiava algumas frases para que eu colocasse em seu cartão de Natal. De certo apenas o destinatário: o marido que ela iria deixar por aqui.

Eu até que mostrei as seis listas com as sugestões de frases, mas aquela moça, como tantos outros que passam diariamente pelo Terminal Rodoviário do Tietê, em São Paulo, prefere assim: contar um pouco da sua história para que, a partir dela, eu ou os meus colegas escrevamos o que a gente achar melhor.

Pergunto sobre a relação deles com os parentes. Afinal, a expressiva maioria dos cartões de Natal que escrevo é endereçada a algum familiar.

Ao fechar o envelope, a sensação que aquela moça me passou foi a de que estivesse encerrando um ciclo de sua vida. Como se dissesse adeus ao marido. Percebi que tal rompimento ainda não estava bem resolvido para ela.

Ao se despedir, ela me contou que iria visitar uma tia-avó que mora no Espírito Santo. Nem ela parecia acreditar que a viagem seria curta. Voltou-se para o menino, segurou a mão dele e partiu.

Na minha cabeça de garoto da zona oeste paulistana, filho único de uma família de classe média, ligado às novas mídias digitais, tinha uma visão equivocada sobre o perfil dos analfabetos brasileiros.

Até então, acreditava que quem não sabia ler nem escrever eram velhinhos, gente que veio de lugares pobres e desassistidos das zonas rurais brasileiras. Graças a essa experiência que estou passando na rodoviária do Tietê, vejo que não é bem assim.

As desigualdades no Brasil são tão gritantes que provocam todos os tipos de distorção. De cada dez pessoas que sentam aqui interessadas em um cartão de Natal, ao menos três são analfabetas. É muito surpreendente para um país que se diz "rico".

Desencontros

Apesar de estar escrito que o cartão e o envio dele são gratuitos, a primeira pergunta que as pessoas me fazem é se é de graça. Há aqueles que sabem escrever muito bem e até me corrigem. Falam quando há "vírgula", "dois pontos", "exclamação". Elas se sentem orgulhosas em ditar.

Quase ninguém sabe o CEP.

Na semana passada, uma senhora bem arrumada enviou um cartão de Natal para o marido e para o ex-marido.

Até aí, tudo bem, mas um detalhe curioso me chamou a atenção: os dois moram na mesma rua.

São quase vizinhos. Ainda perguntei para ela se de fato os endereços estavam certos. Ela confirmou.

Um rapaz de 25 anos contou que foi afastado da mãe quando criança. O pai veio da Bahia para trabalhar em São Paulo e trouxe o bebê junto.

Fazia mais de 20 anos que ele não via a mãe. Emocionou-se ao me pedir para que escrevesse um cartão de Natal narrando sua vida, seu emprego e suas esperanças de em breve reencontrá-la. Fiquei emocionado ao ouvi-lo.

Nesse caso, ele mesmo fez questão de escrever o cartão de próprio punho.

Outra crença que se mostrou diferente da realidade foi a de que eu imaginava que o ciclo de nordestinos que vêm trabalhar em São Paulo havia se encerrado há tempos. Só que eu estava enganado.

Muitos deles chegam todos os dias a esta rodoviária. Parte deles não sabe ler nem escrever. Quase todos ficam completamente perplexos quando olham para o metrô.

Essa grandiosidade de São Paulo surpreende e assusta.

Também aqui ficou mais explícito para mim como o preconceito contra os nordestinos ainda persiste.

Meus pais também vieram de fora. São mineiros. Tenho a pela morena. Tive a sorte de crescer cercado de privilégios e nunca sofri preconceito.

Ao escrever cada palavra, frase, cartão de Natal, eu me sinto um pouco realizado.

Quando coloco o cartão no envelope, tenho a sensação de que é possível, sim, tornar esse mundo ao menos um pouco mais humanitário.

Ou será que estou apenas sob o efeito do Natal?"

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