segunda-feira, 31 de março de 2014

A água jorrará


Em meio ao desencanto crescente e à disseminação da indiferença que corrói os valores mais essenciais neste mundo em que vivemos, vozes dissonantes se fazem ouvir. São vozes de pessoas que acreditam e valorizam a potencialidade do humano, a hospitalidade e cortesia, a solidariedade e a compaixão; acreditam e buscam, sobretudo, a possibilidade de um horizonte de paz.

Sobre isso escreve Faustino Teixeira, professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da Universidade Federal de Juiz de Fora em artigo publicado originalmente no Amai-vos e reproduzido em parte a seguir:

A crescente atenção para com a espiritualidade não é algo que toca exclusivamente os religiosos (...). A espiritualidade é algo essencial para todos nós, que nos acende para dimensões esquecidas ou adormecidas. Com ela nasce uma renovada alegria no coração, uma fecunda vontade de se abrir à vida, de afirmar a vida, de ouvir as vozes que vêm do Real, de escutar o clamor que vem do outro.
Um desse “amigos de Deus” que precisam ser acolhidos nesse nosso momento atual é Thomas Merton (1915-1968) (...). É difícil encontrar alguém que conseguiu traduzir de forma tão bonita e rica o significado de uma vida espiritual. Para ele, o autêntico contemplativo nunca está desligado do tempo, mas profundamente inserido em seu coração. Trata-se de alguém que assume viver a experiência integral da vida, que acende no coração uma atenção especial para com tudo o que existe, e que vive, simplesmente, a vida em sua profundidade, como o peixe na água. Em seu diário dizia: “A única coisa necessária é uma verdadeira vida interior e espiritual, um crescimento verdadeiro, por minha conta, em profundidade, numa nova direção (...). Minha obrigação é não parar de avançar, crescer interiormente, rezar, livrar-me de apegos e desafiar os medos, aumentar minha fé, que tem sua própria solidão, procurar uma perspectiva inteiramente nova e uma nova dimensão em minha vida” (setembro de 1959).
O radical despertar para o sentido da vida foi se firmando para Merton no aprendizado do silêncio da floresta, sobretudo nos últimos anos de sua vida, enquanto eremita na abadia trapista de Getsêmani. Uma experiência que viveu com todo o seu ser. E curiosamente, quanto mais vivia a unificação interior, mais dilatava o seu coração e sua abertura para os outros e para o universo inteiro. Em certo momento de sua vida, (...) se dá conta que a verdadeira vida contemplativa não pode significar separação do mundo, e que sua solidão vem animada por uma responsabilidade social: que ela não lhe pertence. Nessa ocasião percebeu de forma súbita e iluminada, como se captasse a beleza do coração de todos os seres humanos, que era um com eles. De que não eram seres estranhos à sua vida espiritual, mas que ocupavam nela um lugar central. (...) Foi o ponto de partida para uma nova percepção de Merton, quando então pôde captar a força da presença e gratuidade de Deus no íntimo de cada um.
Ao se aproximar da cavidade secreta do coração, que é o ponto de contato com o divino, Merton viveu uma tal experiência de liberdade interior, que no seu olhar ampliado soube reconhecer o segredo e o valor da alteridade. Na sua relação com a natureza pôde perceber o significado mais profundo do que denominou “ponto virgem” (...), [onde] habita o “paraíso de simplicidade, de autoconsciência – e de esquecimento de si -, liberdade e paz”. É nesse ponto “cego e suave” que se criam as condições para a sabedoria e o conhecimento de si e para a singular acolhida do outro. (...) Esse ponto vazio, que habita o centro de nosso ser, “é o centro de todos os demais amores”. É nele que habita a centelha que está na raiz de toda busca autêntica, e que pertence inteiramente ao Mistério sempre maior, que nós cristãos identificamos como Deus.
Nada mais essencial em nosso tempo sombrio do que saber cultivar o exercício de uma espiritualidade autêntica, de buscar encontrar este pontinho de nada que revela um sentido esquecido e abre portas fundamentais para a percepção do Real. Para além da lógica do mercado, marcada pela competição, pela produtividade, pela vontade de poder, pela ganância e egoísmo, existe um outro horizonte, onde o que é gratuito fala mais forte, e onde o humano pode brilhar com mais autenticidade. Como Merton assinalou, não há programa definido para esta ampliação do olhar, mas há que estar desperto para a sua irrupção. É algo que é dado de graça, e que se revela a cada momento pois está em toda parte. Como assinala Rûmî, um dos grandes místicos sufis, que estaria completando 800 anos neste ano, “Não busques a água; mostra apenas que estás sedento, e a água jorrará ao teu redor”.
Que cada um possa cultivar o seu próprio aprofundamento e crescimento interior, rumo à fonte de água viva que jorra incessante no fundo do seu ser. :-)

sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

can you love the one who...


There’s one in you who’s sweet.
There’s one in you who’s mean.
Can you love them both?
Can you let them both be seen?

Can you love the one who tries?
And love her when she fails?
Can you love the one who lies?
And love the one who wails?

Can you love your tears?
Can you love your worry?
Can you love your darkest fears?
Can you love your fury?

Can you love indifference?
Love the one who clings?
Can you love the vibrant one?
Love the one who sings?

Can you love your addict?
Can you love your thief?
Can you love your vanity?
Can you love your grief?

Can you love your inner child?
And your body as you age?
Can you love your wild side?
Release her from her cage?
Can you love the one fulfilled?
And the one who’s not?

Can you love the one who’s chilled?
And whose temper’s hot?
Can you love the weakling?
The one who’s sometimes sick?

Can you love the warrior?
Who fights through thin and thick?

Can you love your crazy?
Can you love your sane?
Can you love your foolish heart?
Love your scattered brain?

There’s one in you who’s bored.
And one who’s often stressed
Can you love them both at once?
And she who tries her best?

If the answer’s “no.”
To some of the above
Then can you love the one in you
Who’s learning how to love?

Leah Pearlman

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

mar


Aqui
nesta pedra
alguém sentou
olhando o mar

O mar
não parou
pra ser olhado

Foi mar
pra tudo quanto é lado

- Paulo Leminski, via

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

salmo 138


Iahweh, tu me sondas e conheces:
conheces o meu sentar e o meu levantar,
De longe penetras o meu pensamento;
examinas o meu andar e o meu deitar,
meus caminhos todos são familiares a ti.

A palavra ainda não me chegou à língua,
e tu, Iahweh, já a conheces inteira.
Tu me envolves por trás e pela frente,
e sobre mim colocas tua mão.
É um saber maravilhoso, e me ultrapassa,
é alto demais: não posso atingí-lo!

Para onde ir, longe de teu sopro?
Para onde fugir, longe da tua presença?
Se subo aos céus, tu lá estás;
se me deito no Xeol, aí te encontro.

Se tomo as asas da alvorada
para habitar nos limites do mar,
mesmo lá é tua mão que me conduz,
e tua mão direita que me sustenta.

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

ouvir além das palavras


"A escuta profunda brota de um estado de relaxamento, não do esforço em aparar arestas. Toda a abertura, acolhimento e empatia necessários para ouvir encontram solo fértil ao se oferecer uma postura relaxada.

As pessoas se comunicam em vários níveis. Tudo fala. As roupas, os olhares, a respiração, um jeito específico de se curvar ou se levantar, a forma como batemos as mãos ou os pés. Cada pequeno detalhe tem voz, toca uma música.

Assim como é preciso treinar os ouvidos para discernir timbres, tons e efeitos em uma música, também precisamos treinar para realmente ouvir, comunicar e gerar conexão.

Quem já teve a oportunidade de assistir uma orquestra tocando ao ar livre pode relatar como o ambiente inteiro se relaciona com o que está sendo tocado. Não é algo metafísico, nem fantasioso. O vento sopra de uma forma diferente, todos se olham, sorriem silenciosamente, as árvores balançam, os pássaros enlouquecem.

Quando uma pessoa fala, algo similar acontece. Há uma variedade de outras ações sendo executadas ao redor e isso pode facilitar ou dificultar o processo. Às vezes, ela pode estar querendo desabafar, mas o ambiente não é favorável. Algum ruído pode surgir ou pode ser que haja pessoas ao redor em outra sintonia. Um sujeito atento pode tomar uma ação simples como trocar de lugar, alterando os níveis de abertura e conforto.

Enquanto ouve, é importante não só estar atento aos sinais abstratos mas observar as reações físicas do outro. Será que está se distraindo? Está se mexendo demais, está desconfortável, tentando encerrar o assunto, está indiferente?"

(Luciano Ribeiro, via)

fragilidade


Este verso, apenas um arabesco
em torno do elemento essencial – inatingível.
Fogem nuvens de verão, passam aves, navios, ondas,
e teu rosto é quase um espelho onde brinca o incerto movimento,
ai! já brincou, e tudo se fez imóvel, quantidades e quantidades
de sono se depositam sobre a terra esfacelada.
Não mais o desejo de explicar, e múltiplas palavras em feixe
subindo, e o espírito que escolhe, o olho que visita, a música
Feita de depurações e depurações, a delicada modelagem
de um cristal de mil suspiros límpidos e frígidos: não mais
que um arabesco, apenas um arabesco
abraça as coisas, sem reduzi-las.

- Carlos Drummond de Andrade, via

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

o melhor remédio


O melhor remédio é uma mente sã, um sorriso verdadeiro, um coração tranquilo.
Para toda cura, a Verdade 
Para toda conquista, o Respeito 
Para todo esforço, a Prosperidade
Para toda desavença, a Compaixão
Para toda dificuldade, a Esperança 
Para toda vitória, a Fé 
Para todo caminho, a Força 
Para toda tristeza, o Abraço 
Para todo elo, a Confiança 
Para todo o mal, o Amor.

- Caroline Ienne

domingo, 19 de janeiro de 2014

bendita matéria


Bendita sejas tu, áspera Matéria,
gleba estéril, duro rochedo,
tu que não cedes a não ser pela violência,
e nos forças a trabalhar, se quisermos comer.

Bendita sejas tu, perigosa Matéria,
mar violento, paixão indomável,
tu que nos devoras,
caso não te acorrentemos.

Bendita sejas tu, poderosa Matéria,
Evolução irresistível,
Realidade sempre nascente,
tu que a cada momento fazes explodir
as nossas molduras,
obrigando-nos a perseguir sempre mais longe
a Verdade.

Bendita sejas tu, Matéria universal,
Duração sem limites,

Éter sem margens
– Tríplice abismo das estrelas,
dos átomos e das gerações –,
tu que transbordas e dissolves nossas
estreitas medidas,
revelando-nos as dimensões de Deus.

Bendita sejas tu, Matéria impenetrável,
tu que, estendida em todo lugar
entre nossas almas e o Mundo das essências,
nos deixas lânguidos com o desejo
de penetrar o véu sem costura dos fenômenos.

- Teilhard de Chardin, via

sábado, 18 de janeiro de 2014

é preciso saber aceitar as próprias pausas


"É preciso saber aceitar as próprias pausas. (...)

No fundo, as cartas a Deus são as únicas cartas de amor que devem ser escritas. (...) É preciso ser capaz de viver sem livros e sem nada. Sempre haverá um pedacinho de céu que se pode olhar e um espaço suficiente dentro de mim para juntar as mãos em uma oração. (...)

A minha vida tornou-se um diálogo ininterrupto contigo, meu Deus, um único grande diálogo. Às vezes, quando estou em um cantinho do campo, os meus pés plantados na sua terra, os meus olhos voltados para o teu céu, o meu rosto se inunda de lágrimas que brotam de uma emoção profunda e de gratidão. Mesmo à noite, quando, deitada no meu leito, me recolho em ti, meu Deus, lágrimas de gratidão inundam o meu rosto: e essa é a minha oração."

- Etty Hillesum, aqui

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

pedra


Na pedra recolho
o sol na pedra quente, imóvel.
E o pródigo calor pródigo,
imóvel, ao corpo que se abeira
desse lago plácido.
Sem turbulência a alma aqueço
ao sol e vai-se este calor
à alma que se abeira, imóvel.
É um signo simples, cadência
de água, incandescência e sol
de quem só se encontra
em plenitude ou ânsia
na pedra quente e só.

- Dora Ferreira da Silva , via

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

ser no presente


Quem se senta e fica imóvel imediatamente se conecta com o primeiro nível de consciência, que fica um pouco abaixo da superfície de atenção do funcionamento cotidiano da mente. Trata-se de uma dura constatação, a do grau de indisciplina e inquietude de nossa mente (...). Santa Teresa comparava isso a um navio cuja tripulação se amotinou, prendeu o capitão e se revesa caoticamente no comando do navio. Alguns dias podem ser melhores do que outros, em matéria de distração, mas até mesmo isto, apenas prova como é inconstante a superfície de nossa mente, como depende das condições externas, como somos descentrados. (...)
“Por isso vos digo: não vos preocupeis com a vossa vida quanto ao que haveis de comer, nem com o vosso corpo quanto ao que haveis de vestir. Não é a vida mais do que o alimento e o corpo mais do que a roupa? (Mt 6, 26) Nossa meta é a de ser no presente momento, que é o único momento de realidade, de encontro com o Deus que é “Eu Sou”. No entanto, em questão de segundos, estamos pensando pensamentos de ontem, fazendo planos para amanhã, ou encadeando sonhos e desejos de realização no reino da fantasia. “Buscai em primeiro lugar seu Reino e sua justiça, e todas essas coisas vos serão acrescentadas. Não vos preocupeis, portanto, com o dia de amanhã, pois o dia de manhã se preocupará consigo mesmo”. (Mt 6, 33) O ensinamento de Jesus sobre a prece é simples e puro, incisivamente sábio e de bom senso. Ainda assim, parece estar muito além de de nossa capacidade de colocá-lo em prática. Será que ele estava mesmo se dirigindo ao comum da humanidade?
A descoberta do nosso nível de distração é fonte de humildade. Ajuda a nos lembrar que [o mantra] é uma descoberta universal. Por que outra razão teria João Cassiano recomendado o mantra (que ele chamava de "fórmula") mil e seiscentos anos atrás? (...) Diante dessa descoberta, é fácil nos desencorajarmos e darmos as costas para meditação. "Não é meu tipo de espiritualidade. Eu não sou do tipo de pessoa disciplinada. Por que meu período de oração deve ser mais um período de trabalho?" Esse desencorajamento frequentemente oculta um sentimento recorrente de fracasso e de inadequação, o lado fraco de nosso ego machucado e que se rejeita: “Não sou bom pra nada, nem mesmo para a meditação”.
O que precisamos acima de tudo, neste estagio, (...) é de um discernimento do significado da meditação e de uma sede que brota de um nível mais profundo de consciência do que aquele ao qual estamos presos (...).

A compreensão clara, desde o início, do que é o significado e o propósito do mantra, nos ajuda. Não se trata de uma varinha de condão que esvazia a mente, ou um interruptor que nos liga a Deus, mas, de uma disciplina, “que começa na fé e termina no amor”, que nos leva à pobreza do espírito. 

Não repetimos o mantra para eliminar as distrações, mas para nos ajudar a desviar nossa atenção delas. Apenas para descobrir que somos, ainda que modestamente, livres para dirigir nossa atenção em outra direção é o primeiro grande despertar. Trata-se do início do aprofundamento da consciência, que permite deixar as distrações na superfície, tal como as ondas na superfície do oceano.

- Laurence Freeman, OSB

nossa senhora do silêncio

Escultura: José Ismael

Às vezes quando, abatido e humilde, a própria força de sonhar se me desfolha e se me seca, e o meu único sonho só pode ser o pensar nos meus sonhos.

É então que me interrogo sobre quem tu és, figura que atravessas todas as minhas antigas visões demoradas de paisagens outras, e de interiores antigos e de cerimoniais faustosos de silêncio.

Visito contigo regiões que são talvez sonhos teus, terras que são talvez corpos teus de ausência e desumanidade. Talvez eu não tenha outro sonho senão tu, talvez seja nos teus olhos, encostando a minha face à tua, que eu lerei essas paisagens impossíveis, esses tédios falsos, esses sentimentos que habitam a sombra dos meus cansaços e as grutas dos meus desassossegos.

Eu não sei quem tu és. Que espécie de vida tens? Que modo de ver é o modo como te vejo? Como não te sonhar? Como não te sonhar Senhora das Horas que passam? Madona das águas estagnadas e das algas mortas. Consoladora dos que não têm consolação, Lágrima dos que nunca choram, Hora que nunca soa. Ópio de todos os silêncios, Lira para não se tanger, Vitral de lonjura e de abandono.

Livra-me da religião, porque é suave; e da descrença porque é forte. Rezo a ti o meu amor porque o meu amor é já uma oração; mas nem te concebo como amada, nem te ergo ante mim como santa. Só tu, sol que não brilhas, alumias as cavernas, porque as cavernas são tuas filhas. Posso amar-te e também adorar-te porque o meu amor não te possui e a minha adoração não te afasta.

Sê a Noite Total e que todo eu me perca e me esqueça em ti, e que os meus sonhos brilhem, estrelas, no teu corpo de distância e negação... Seja eu as dobras do teu manto, as jóias da tua tiara, e o ouro outro dos anéis dos teus dedos.

Realizadora dos absurdos. Que o teu silêncio me embale, que o teu mero-ser me acaricie e me amacie e me conforte Anjo da Guarda dos abandonados. Tu não és mulher. Nem mesmo dentro de mim evocas qualquer coisa que eu possa sentir feminina. É quando falo de ti que as palavras te chamam fêmea, e as expressões te contornam de mulher. Mas tu, na tua vaga essência, não és nada. Não tens realidade, nem mesmo uma realidade só tua. Propriamente, não te vejo, nem mesmo te sinto. Ocupas o intervalo dos meus pensamentos. Por isso eu não te penso nem te sinto. Debruço-me sobre o teu rosto branco nas águas noturnas do meu desassossego, no meu saber que és lua.

- Fernando Pessoa (via)

murar o medo

Bansky

O medo foi um dos meus primeiros mestres. Antes de ganhar confiança em celestiais criaturas, aprendi a temer monstros, fantasmas e demônios. Os anjos, quando chegaram, já eram para me guardarem, servindo como agentes da segurança privada das almas. Nem sempre os que me protegiam sabiam da diferença entre sentimento e realidade. Isso acontecia, por exemplo, quando me ensinavam a recear os desconhecidos.

Na realidade, a maior parte da violência contra as crianças sempre foi praticada não por estranhos, mas por parentes e conhecidos. Os fantasmas que serviam na minha infância reproduziam esse velho engano de que estamos mais seguros em ambientes que reconhecemos. Os meus anjos da guarda tinham a ingenuidade de acreditar que eu estaria mais protegido apenas por não me aventurar para além da fronteira da minha língua, da minha cultura, do meu território.

O medo foi, afinal, o mestre que mais me fez desaprender. Quando deixei a minha casa natal, uma invisível mão roubava-me a coragem de viver e a audácia de ser eu mesmo. No horizonte vislumbravam-se mais muros do que estradas. Nessa altura, algo me sugeria o seguinte: que há neste mundo mais medo de coisas más do que coisas más propriamente ditas.

No Moçambique colonial em que nasci e cresci, a narrativa do medo tinha um invejável casting internacional: os chineses que comiam crianças, os chamados terroristas que lutavam pela independência do país, e um ateu barbudo com um nome alemão. Esses fantasmas tiveram o fim de todos os fantasmas: morreram quando morreu o medo. Os chineses abriram restaurantes junto à nossa porta, os ditos terroristas são governantes respeitáveis e Karl Marx, o ateu barbudo, é um simpático avô que não deixou descendência.

O preço dessa construção [narrativa] de terror foi, no entanto, trágico para o continente africano. Em nome da luta contra o comunismo cometeram-se as mais indizíveis barbaridades. Em nome da segurança mundial foram colocados e conservados no Poder alguns dos ditadores mais sanguinários de que há memória. A mais grave herança dessa longa intervenção externa é a facilidade com que as elites africanas continuam a culpar os outros pelos seus próprios fracassos.

A Guerra-Fria esfriou, mas o maniqueísmo que a sustinha não desarmou, inventando rapidamente outras geografias do medo, a Oriente e a Ocidente. E porque se trata de novas entidades demoníacas não bastam os seculares meios de governação… Precisamos de intervenção com legitimidade divina… O que era ideologia passou a ser crença, o que era política tornou-se religião, o que era religião passou a ser estratégia de poder.

Para fabricar armas é preciso fabricar inimigos. Para produzir inimigos é imperioso sustentar fantasmas. A manutenção desse alvoroço requer um dispendioso aparato e um batalhão de especialistas que, em segredo, tomam decisões em nosso nome. Eis o que nos dizem: para superarmos as ameaças domésticas precisamos de mais polícia, mais prisões, mais segurança privada e menos privacidade. Para enfrentar as ameaças globais precisamos de mais exércitos, mais serviços secretos e a suspensão temporária da nossa cidadania. Todos sabemos que o caminho verdadeiro tem que ser outro. Todos sabemos que esse outro caminho começaria pelo desejo de conhecermos melhor esses que, de um e do outro lado, aprendemos a chamar de “eles”.

Aos adversários políticos e militares, juntam-se agora o clima, a demografia e as epidemias. O sentimento que se criou é o seguinte: a realidade é perigosa, a natureza é traiçoeira e a humanidade é imprevisível. Vivemos – como cidadãos e como espécie – em permanente situação de emergência. Como em qualquer estado de sítio, as liberdades individuais devem ser contidas, a privacidade pode ser invadida e a racionalidade deve ser suspensa.

Todas estas restrições servem para que não sejam feitas perguntas [incômodas] como, por exemplo, estas: porque motivo a crise financeira não atingiu a indústria de armamento? Porque motivo se gastou, apenas o ano passado, um trilhão e meio de dólares com armamento militar? Porque razão os que hoje tentam proteger os civis na Líbia são exatamente os que mais armas venderam ao regime do coronel Kadaffi? Porque motivos se realizam mais seminários sobre segurança do que sobre justiça?

Se queremos resolver (e não apenas discutir) a segurança mundial – teremos que enfrentar ameaças bem reais e urgentes. Há uma arma de destruição massiva que está sendo usada todos os dias, em todo o mundo, sem que sejam precisos pretextos de guerra. Essa arma chama-se fome. Em pleno século 21, um em cada seis seres humanos passa fome. O custo para superar a fome mundial seria uma fração muito pequena do que se gasta em armamento. A fome será, sem dúvida, a maior causa de insegurança do nosso tempo.

Mencionarei ainda outra silenciada violência: em todo o mundo, uma em cada três mulheres foi ou será vítima de violência física ou sexual durante o seu tempo de vida… A verdade é que… pesa uma condenação antecipada pelo simples fato de serem mulheres.

A nossa indignação, porém, é bem menor que o medo. Sem darmos conta, fomos convertidos em soldados de um exército sem nome, e como militares sem farda deixamos de questionar. Deixamos de fazer perguntas e de discutir razões. As questões de ética são esquecidas porque está provada a barbaridade dos outros. E porque estamos em guerra, não temos que fazer prova de coerência nem de ética nem de legalidade.

É sintomático que a única construção humana que pode ser vista do espaço seja uma muralha. A chamada Grande Muralha foi erguida para proteger a China das guerras e das invasões. A Muralha não evitou conflitos nem parou os invasores. Possivelmente, morreram mais chineses construindo a Muralha do que vítimas das invasões do Norte. Diz-se que alguns dos trabalhadores que morreram foram emparedados na sua própria construção. Esses corpos convertidos em muro e pedra são uma metáfora de quanto o medo nos pode aprisionar.

Há muros que separam nações, há muros que dividem pobres e ricos. Mas não há hoje no mundo muro que separe os que têm medo dos que não têm medo. Sob as mesmas nuvens cinzentas vivemos todos nós, do sul e do norte, do ocidente e do oriente… Citarei Eduardo Galeano acerca disso que é o medo global:

“Os que trabalham têm medo de perder o trabalho. Os que não trabalham têm medo de nunca encontrar trabalho. Quem não tem medo da fome, tem medo da comida. Os civis têm medo dos militares, os militares têm medo da falta de armas, as armas têm medo da falta de guerras.”

E, se calhar, acrescento agora eu, há quem tenha medo que o medo acabe.

(Mia Couto, aqui)

creio na minha fome


Creio na minha fome
na demanda de todas
as fomes
e em seus atributos
de espanto e loucura

creio na substância
infinita
e em seus possíveis
modos transparentes
e fugazes

creio no corpo feminino
nas formas nuas
que me salvam
do silêncio

creio nos pássaros
que voam
bêbados de ocaso
creio nas rochas
que fundam
minha esquiva paisagem

creio nos horizontes
do nada
em que deus trava
para sempre perdido
o mais rude combate

creio no universo
abrasado
de paixão e delírio

- Marco Lucchesi, via  

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

canção de alta noite


Alta noite, lua quieta,
muros frios, praia rasa.

Andar, andar, que um poeta
não necessita de casa.

Acaba-se a última porta.
O resto é o chão do abandono.

Um poeta, na noite morta,
não necessita de sono.

Andar...Perder o seu passo
na noite, também perdida.

Um poeta, à mercê do espaço,
nem necessita de vida.

Andar... - enquanto consente
Deus que seja a noite andada.

Porque o poeta, indiferente,
anda por andar - somente.
Não necessita de nada.

- Cecília Meirelles

Presente de Lula Ramires :-)

a revolução, fora e dentro

Scarpini

Amanhã você vai sair — ou voltar — às ruas e fazer a revolução.

Sem medo, sem máscara, vai dizer “bom dia”, “boa tarde” e “boa noite” a todos os conhecidos e desconhecidos que passarem por você. No elevador, no estacionamento, no ônibus, na fila da padaria. E se ninguém responder, não importa. Você vai manifestar um sorriso largo como uma avenida e seguir em frente.

Porque é para frente que se anda.

No trânsito, vai dar passagem a todos os outros carros assim que vir uma seta piscar, indiferente às buzinas nervosas de quem vier atrás. E quando alguém fizer a mesma gentileza por você, não vai esquecer de acenar em puro e simples agradecimento.

Ao ligar o ônibus coletivo com o qual circula pela cidade todos os dias, vai se lembrar de que está conduzindo pessoas e não caixas de verdura. E de que os milhares de veículos lá fora não são seus adversários em uma corrida para lugar nenhum.

Vai começar todo e qualquer pedido com “por favor” e concluí-lo com “obrigado”.

Quando reunir seu batalhão no quartel, em vez de gritar “ordinário, marche”, vai orientá-lo a ler a Constituição Brasileira e qualquer um dos livros de Carlos Drummond de Andrade. Para que seus soldados percebam, do alto de seus coturnos, o quanto as coisas às vezes não fazem mesmo sentido. E descubram o quanto a autoridade que lhes foi atribuída pode ser usada não para reprimir e subjugar, mas para fazer da vida uma extraordinária marcha para frente.

Porque é para frente que se marcha.

No hospital público em que você, doutor ou doutora, dá plantão de madrugada, vai atender cada paciente com a calma, a seriedade, a competência e o respeito devidos a qualquer ser humano. E vai sentir vergonha de todas as vezes em que se dirigiu a essas pessoas como se você fosse um ser superior vestindo branco e elas não passassem de malditas desvalidas atrás de uma injeção “de graça”.

Nas cerimônias religiosas, vai retribuir a confiança de quem o chama de padre, pastor ou pai de santo não apenas com uma benção, um sermão ou um passe, mas pedindo às pessoas que façam uma oração para aqueles que protestam e para aqueles contra quem se protesta. E que nessa oração, o único pedido seja a compreensão e a clareza, para que todos saibam realmente o que estão fazendo, contra quem, contra o quê e como estão se manifestando.
Nos veículos de comunicação que você dirige, vai determinar a seus repórteres, redatores, editores e afins que se concentrem no factual, que ouçam, analisem e publiquem todas as visões possíveis de cada fato. E que deixem os leitores, ouvintes e telespectadores concluírem como bem entenderem.

Nas escolas e nas faculdades, vai ensinar seus alunos a ver e pensar política de outro modo, para além dos discursos e dos partidos, com profundidade, amplitude e perspectiva. Com inteligência, liberdade e espírito crítico.

Nas redes sociais, antes de curtir e compartilhar qualquer post sobre qualquer assunto, você vai pensar. E vai pensar de novo, até se certificar de que realmente acredita naquilo.

E quando alguém próximo a você esbravejar palavras de ódio e apoio à violência — seja da parte de quem se manifesta depredando, seja do lado de quem defende agredindo — você não vai discutir. Vai respirar fundo, pensar consigo “let it be” e seguir em frente. Porque há vários lados nessa história, mas nenhum deles é “o adversário”. E você está em todos eles.

Você é o mínimo de inteligência que resiste em cada homem e cada mulher que ainda respiram neste mundo, brutalizados e amortecidos pela doença da normalidade que torna tudo banal — as mortes, os estupros, a violência doméstica, a roubalheira nos cargos públicos, o corrupto e o corruptor, o ódio e a maldade.

Amanhã você vai sair às ruas e fazer a revolução. E se ninguém mais aderir, não importa. Você vai manifestar um sorriso largo como uma avenida e seguir em frente.

Porque é para frente que se anda.

E a revolução “lá fora” só começa depois de uma outra, aquela que acontece “aqui dentro”.

- André J. Gomes, Revista Bula

os dois reis e os dois labirintos


Contam os homens dignos de fé (porem Ala sabe mais) que nos primeiros dias houve um rei das ilhas da Babilônia que reuniu arquitetos e magos e ordenou-lhes a construção de labirinto tão surpreendente e sutil que os varões mais prudentes não se venturavam a entrar, e os que entravam se perdiam. Essa obra era um escândalo, pois a confusão e a maravilha são operações próprias de Deus e não dos homens. Com o correr do tempo, veio à sua corte um rei dos árabes, e o rei da Babilônia (para zombar da simplicidade de seu hóspede) fez com que ele penetrasse no labirinto, onde vagueou humilhado e confuso ate o fim da tarde. Implorou então o socorro divino e deu com a porta. Seus lábios não proferiram queixa nenhuma, mas disse ao rei da Babilônia que ele tinha na Arabia outro labirinto e, se Deus quisesse, lho daria a conhecer algum dia. Depois regressou a Arábia, juntou seus capitães e alcaides e arrasou os reinos da Babilônia com tão venturosa sorte que derrubou seus castelos, dizimou sua gente e fez prisioneiro o próprio rei. Amarrou-o sobre um camelo veloz e levou-o para o deserto. Cavalgaram três dias, e lhe disse: "Oh, rei do tempo e substância e símbolo do século, na Babilônia, quiseste que me perdesse num labirinto de bronze com muitas escadas, portas e muros; agora o Poderoso achou por bem que eu te mostre o meu, onde não há escadas a subir, nem portas a forçar, nem cansativas galerias a percorrer, nem muros que te vedem os passos".

Em seguida, desatou-lhes as amarras e o abandonou no meio do deserto, onde morreu de fome e de sede. A g1ória esteja com Aquele que não morre.

- Jorge Luis Borges, de celestial ironia

tudo, todos e o todo


Somos feitos de barro e de fogo
e por isso somos o desejo e o amor.
Fomos feitos de terra e de água
e assim somos eternos como a vida
e somos passageiros como a flor.
Somos a luz, a sombra, o clarão, a escuridão
a memória de deus, a história e a poesia.
Somos o espaço e o tempo, a casa e a janela
e a noite e o dia, e o sol e o céu e o chão.
Somos o silêncio e o som da vida.
O estudo, a lembrança e o esquecimento.
Somos o medo e o abandono.
A espera somos nós e somos a esperança.
Pois não somos mais e nem menos do que tudo.
Somos o perene e o momento, a pedra e o vento
a energia e a paz, a vida criada e o criador.
Somos o mundo que sente, e irmãos da vida
somos a aventura de ser vida e sentimento.
E assim em cada ave que voa há nossa alma
e em cada ave que morre, a nossa dor.

- Carlos Rodrigues Brandão

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terça-feira, 14 de janeiro de 2014

deus é silêncio


"Mestre Eckhart diz que não há nada tão parecido com Deus quanto o silêncio. A razão disso é que o silêncio não é apenas a ausência de ruído. Quando meditamos, procuramos um tempo e um lugar tranquilos, externamente silenciosos, mas não é isso que esse silêncio realmente significa. Silêncio é atenção. Quando prestamos atenção a algo, mas prestamos atenção de verdade, estamos sendo silentes. Assim, se nada é tão parecido com Deus quanto o silêncio é por nada ser tão de Deus quanto a atenção pura, o puro amor. Quando tiramos a atenção de nós mesmos, amamos aquele a quem damos essa atenção. Por isso, na tradição mística do cristianismo, o trabalho da contemplação é o trabalho do amor, porque é o trabalho do silêncio, porque o trabalho do silêncio é o trabalho da atenção."

- Laurence Freeman (OSB)

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unidade na diversidade